São Paulo, domingo, 5 de janeiro de 1997
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Custos políticos de um novo mandato

PAUL SINGER

O projeto de emenda constitucional atualmente tramitando na Câmara dos Deputados, que revoga a proibição da recandidatura dos ocupantes de cargos executivos e as exigências de desincompatibilização para que os referidos possam candidatar-se (hoje, somente a outros cargos), promete ou ameaça acarretar mudanças profundas em nossa vida política.
Embora vise apenas viabilizar a reeleição do presidente, a emenda não pode deixar de atingir todos os cargos executivos municipais e estaduais. O resultado será a reeleição generalizada de presidentes, governadores e prefeitos e, portanto, a queda vertical da taxa de renovação das chefias de governo e da rotatividade dos partidos e coligações partidárias que as dominam.
Nossa cultura política leva o eleitorado a votar sobretudo em "nomes" para cargos executivos, dando pouca ou nenhuma importância aos programas dos candidatos e às correntes partidárias que representam. Cada candidato procura convencer o eleitor de que é o mais honesto, sincero e competente. E a chave da vitória está na credibilidade assim conquistada.
Nesse tipo de competição, o fator decisivo é o grau de conhecimento, de familiaridade, quase diríamos de intimidade que os eleitores possuem em relação à pessoa do candidato. Daí a vantagem dos que já exerceram cargos públicos, que podem lembrar o eleitor de que "esse você conhece". E a desvantagem dos que estréiam na política, a não ser que tenham sido previamente repórteres de televisão ou rádio, atores ou atrizes de telenovelas etc.
É, pois, imensa a vantagem que a emenda da reeleição dá ao presidente, assim como aos governadores e prefeitos. Fernando Henrique frequenta diariamente os noticiários de TV e rádio e as manchetes dos jornais e é hoje o político mais conhecido do Brasil. Nos outros níveis de governo, o mesmo ocorre com governadores e prefeitos.
É claro que esse tratamento que a mídia dá ao presidente não é isento de críticas. Mas, mesmo quando o nome e a figura do primeiro mandatário são associados a medidas impopulares ou a intenções inconfessáveis, o saldo que fica é a familiaridade. O eleitor se acostuma com cara, voz, porte e nome e os associa a muito poder.
A parte politicamente mais alerta do eleitorado conhece certo número de políticos e identifica a maioria dos candidatos pela biografia. Mas a maioria do eleitorado só pode ser classificada como politicamente "distraída": não acompanha a vida pública, detesta "política" e só vota porque obrigada. São esses votantes que constituíram o eleitorado cativo dos recandidatos.
Nas pesquisas de opinião, dariam preferência ao único nome de que já ouviram falar e que poderiam com segurança demonstrar que "sabem quem é". E, nas urnas, sufragariam esse nome, porque mal acompanham a propaganda eleitoral e não tomam conhecimento dos outros candidatos.
Nos EUA, onde o privilégio de reeleição sem desincompatibilização vigora, o voto não é obrigatório, e essa parte do público não se registra como eleitor. Por isso, lá esse privilégio tem muito menos efeito do que teria no Brasil, se a emenda em questão fosse aprovada.
Os resultados das eleições no Brasil nesta década confirmam estas considerações. Com muita frequência, os vencedores foram ex-prefeitos e ex-governadores. Mas, como a reeleição direta está proibida, esses candidatos tiveram que esperar quatro anos, em geral, para voltar a disputar os cargos que já tinham ocupado. Durante esse intervalo, o novo prefeito ou governador ocupava o centro das atenções da mídia, esmaecendo a imagem do "ex" na memória dos mais distraídos.
Se, mesmo assim, muitos entraram na competição eleitoral com inegável vantagem, é fácil imaginar a colher de chá que seria poder candidatar-se à própria sucessão, sem deixar o cargo por um dia sequer. E podendo programar toda atividade governamental pública em função da campanha eleitoral. O que neste ano Maluf e Maia fizeram em prol de candidatos "desconhecidos" poderia ser feito de peito aberto em proveito próprio.
Se a alma da democracia é o "fair play", a equidade das regras que oferecem a todos os competidores possibilidades iguais, a reeleição, do jeito que está sendo proposta, representa uma ameaça letal à democracia brasileira. Cumpre aos que a amam e sofreram para reavê-la tomar posição antes que seja tarde.

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