São Paulo, quarta-feira, 8 de janeiro de 1997
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A nostalgia das certezas

ANTONIO BARROS DE CASTRO

Deixando um jantar regado por acaloradas discussões, ouvi certa vez o desabafo de um amigo: eu seria um homem feliz se tivesse, sobre qualquer coisa, a certeza que fulano tem a respeito de tudo.
Daí por diante, vez por outra, a frase voltou à minha cabeça. E, com ela, a convicção de que problema não se reduz a (inegáveis) diferenças de temperamento.
Recentemente, o problema tornou-se mais presente -e incômodo- do que nunca.
Explico-me. Três amigos me confessaram que, independentemente desta ou daquela qualidade, meus artigos na Folha são pouco incisivos. Segundo um deles, carecem, inclusive, de conclusões.
Certos ou errados, eles tocaram numa ferida aberta. Não consigo, de fato, visualizar com um mínimo de convicção o futuro da economia que emerge da abertura e da estabilização -refiro-me, particularmente, às atividades produtivas e ao seu ritmo de crescimento. A exagerada dose de perplexidade reflete, porém, uma importante experiência a que tenho me dedicado nos últimos meses.
Convencido de que o eixo São Paulo-Rio está perdendo rapidamente peso e representatividade, parti para a observação das mudanças em diversas regiões. E o que percebi foi que, em diversos casos, parecem estar em curso intensas e inusitadas mudanças.
Tomarei algumas ilustrações -reconhecidamente selecionadas para realçar contrastes e surpresas.
Em certas áreas, o surgimento de novas modalidades de trabalho informal está introduzindo fenômenos verdadeiramente insuspeitados.
Por exemplo, adquire vigor a manufatura feita a domicílio ou em galpões de (supostas) cooperativas. Impera, no caso, o pagamento por peça.
Em mais de um sentido, estamos aqui diante do renascimento -na serra do Baturité (Ceará), por exemplo- de um fenômeno que, em termos mundiais, antecedeu o surgimento das fábricas.
A resposta à concorrência daí advinda, contudo, vem provocando a aparição de réplicas no Sul do país. Assim, e respeitadas as especificidades, algo semelhante parece ter sido proposto pelos trabalhadores da Azaléia, do Rio Grande do Sul. No primeiro caso, uma remota região começa a entrar no mapa. No segundo, trata-se de uma luta para não sair do mapa.
Ainda no plano das experiências de natureza microeconômica, caberia chamar a atenção para o caso da Coteminas.
Aparentemente, estamos aqui diante de um caso-limite, a assinalar mais uma tendência insuspeitada. Consta que a empresa emprega teares suíços de última geração, operados pela mão-de-obra (possivelmente) mais barata do país.
Advirta-se que a maioria esmagadora dos analistas acreditou até ontem (e, possivelmente, continua a crer) que as técnicas mais avançadas requerem mão-de-obra preparada.
Pelo menos do ponto de vista de educação formal, contudo, esse não é remotamente o caso, no interior do Rio Grande do Norte ou em Montes Claros (Minas Gerais).
Esses e outros exemplos mostram o país, para o bem ou para o mal, convertido num vasto laboratório.
Avanços e recuos, anacronicamente, aí se combinam. Um tal grau de flexibilidade, seja das relações sociais, seja das técnicas produtivas, insisto, não era nem sequer suspeitado.
Por outro lado, e no plano das políticas, os favores concedidos pelos poderes públicos (em seus diversos níveis e cumulativamente) talvez excedam os momentos da mais ativa política de promoções, ao longo do pós-guerra. E isso apesar da discurseira liberal, como assinalei recentemente nesta coluna.
Em resumo, sob o acicate da competição (interna e externa), com o impulso trazido pela democracia (que valoriza, em princípio, universalmente, os detentores de votos e seus representantes) e dadas as novas possibilidades criadas pela técnica (Baturité não seria possível se não fossem o computador e o fax), as diferenças dos Brasis estão vindo vigorosa e desordenadamente à tona.
Tudo isso num clima de grande desinibição, ditada pela percepção, amplamente difundida, de que negar o passado, em si, já é um mérito.
Voltemos, porém, ao início. Como projetar os resultados dessas transformações? Estamos vivendo a recuperação caótica do tempo perdido: economicamente, de 1980 a 1993; politicamente, de 1964 até muito recentemente.
No plano econômico, a experiência não tem precedentes -e pouco se encontra, até o presente, sedimentado. Para o analista, é cravar o olho nessa história em aberto.
Só? Sim e não. Sim, no sentido de que só tem sentido o pensamento que tome em conta essa desinibida realidade. Não, no sentido de que há que tentar ir além desse espetáculo de fatos espirrando em todas as direções.
Para um país que viveu uma fase de certeza de que tudo daria certo e outra de que tudo daria errado, a nostalgia das certezas parece-me hoje, mais que nunca, má companheira.

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