São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 1997
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A redistribuição acidental

PAUL SINGER

Multiplicam-se os indícios de que, desde a implantação do Plano Real, multiplicou-se a massa de consumidores de baixa renda cujo poder aquisitivo aumentou.
O crescimento de vendas de aparelhos domésticos, do consumo de energia elétrica residencial, do consumo de cimento para reformas de casas na periferia, a implantação nessa região de McDonald's e lojas de locação de videocassetes e outros fatos semelhantes dão testemunho de que um ponderável número de famílias, que antes estava excluído de tudo que não fosse a subsistência básica, conseguiu nos últimos dois anos e meio acesso ao que, do ângulo da sobrevivência, seria "supérfluo", mas que, do ponto de vista cultural, é "essencial".
Não existem dados precisos, mas a hipótese de uma redistribuição significativa da renda suscita dúvidas: entre 1993 e 1995, o produto real "per capita" cresceu cerca de 7%; nesse caso, de onde saiu a renda adicional apropriada pelas classes D e E?
Se a redistribuição ocorreu em detrimento de outras classes, qual delas sofreu perda acentuada de renda? E principalmente: quais foram os mecanismos que operaram essa notável elevação do padrão de vida de parte da massa popular brasileira?
Em primeiro lugar, o Plano Real fez com que entre 1993 e 1995, a importação praticamente dobrasse, passando de US$ 25 bilhões para US$ 50 bilhões, fazendo com que o produto nacional crescesse mais do que o interno.
Em outras palavras, o produto apropriado pelos residentes no Brasil aumentou mais do que o produto produzido no país, sendo a diferença -de 4% a 5%- financiada pela entrada de capitais externos.
O consumo dos brasileiros deve ter aumentado talvez uns 10% "per capita" nesses dois anos, embora o produto real "per capita" tenha crescido somente 7%.
Em segundo lugar, a estabilização dos preços trouxe um aumento real de renda a todos os que não tinham acesso aos bancos. As contas reajustadas diariamente compensavam, para os correntistas, grande parte das perdas acarretadas pela elevação dos preços.
Mas a maioria dos pobres não tinha acesso aos bancos, nem mesmo aos bancos públicos, o que a obrigava a se defender da inflação por meio da compra antecipada de bens não perecíveis como cereais, óleo, açúcar. Sem dúvida, uma forma de compensar a inflação muito mais deficiente do que a correção diária dos saldos bancários.
Essa injustiça social permaneceu ignorada, e ninguém (inclusive quem assina este artigo) se lembrou de fazer uma campanha para abrir os bancos, como serviço público que deveriam ser, aos pobres.
Resultado: quando o Plano Real fez a inflação cair, todos deixaram de perder, mas as pessoas de baixa renda deixaram de perder mais.
Os entusiastas do Plano Real tendem a exagerar aquelas perdas e, portanto, o benefício resultante de sua eliminação. Raciocinam como se uma inflação mensal de 40%, que equivale a uma inflação média de 20% ao longo do mês, eliminasse um sexto do poder aquisitivo do salário, o que só ocorreria se todo dia 1/30 dele fosse gasto.
Na realidade, os pobres gastavam a metade ou mais de sua renda em pagamentos que não eram afetados pela inflação mensal: aluguel, luz, gás, condução (os passes eram comprados no início do mês) etc.
Mesmo assim, a queda da inflação de mais de 40% para menos de 1% mensal pode ter dado um ganho de cerca de 10% do poder aquisitivo do salário a quem não tinha acesso a banco.
Se fosse só isso, a redistribuição da renda teria sido modesta. Mas houve outro efeito do Plano Real que beneficiou os mais pobres. Foi o aumento dos preços relativos dos serviços, sobretudo dos serviços pessoais, que acompanhou a estabilização. Enquanto os preços dos produtos manufaturados quase não cresceram desde julho de 1994, os preços dos serviços aumentaram bastante.
Acontece que boa parte desses serviços é prestada por trabalhadores de baixa renda: empregados domésticos, arrumadeiras, faxineiros, cabeleireiros, garçons, lavadeiras e passadeiras, jardineiros, encanadores, pedreiros, eletricistas etc.
É difícil identificar as razões da alta dos serviços, mas ela é observada em todas as estabilizações resultantes da concorrência de produtos importados.
Possivelmente, a alta dos serviços se explica pelo fato de que leva tempo até que todos tomem conhecimento de que, de fato, a inflação caiu drasticamente: os fabricantes de produtos internacionalmente transacionáveis não podem aumentar os preços que cobram por causa da concorrência dos importados, mas os prestadores de serviços não têm esse óbice.
Os mercados de serviços são menos concorrenciais que os de manufaturados. Em primeiro lugar, porque os serviços não são padronizados, o que dificulta a comparação de preços e sua eventual igualação.
O serviço doméstico, por exemplo, depende do tamanho da família e do domicílio, e o preço varia com o poder aquisitivo do comprador. Nos bairros "ricos", empregadas, lavadeiras, jardineiros e faxineiros ganham bem mais do que nos bairros "médios". O mesmo vale, possivelmente, para escolas privadas e serviços de saúde particulares. Cada serviço de reparação, seja de um encanamento, de uma televisão ou de um automóvel, é diferente dos outros, o que explica a grande disparidade de preços que se observa nesses mercados.
Entre julho de 1994, início do Plano Real, e outubro de 1996 (último dado disponível) o índice de custo de vida em São Paulo, da Fipe, aumentou 59,5%. Nesses 27 meses, os aluguéis aumentaram 513,62%, os serviços pessoais, 146,15%, as despesas operacionais na manutenção dos domicílios, 136,91%, os serviços médicos, 121,81%, as escolas, 114,86% e a alimentação fora de casa, 71,39%.
Compare-se a variação dos preços desses serviços com os de produtos industrializados: alimentos, 19,28%; equipamento eletroeletrônico, 37,54%; aparelhos de imagem/som, 2,20%; mobiliário, 65,74%; veículo próprio, 0,73%; vestuário, 1,45%; remédios, 41,21%.
Impressiona a disparidade. Os serviços prestados por pobres aumentaram entre 137% e 146%, ao passo que a comida industrializada aumentou menos de 20% e mesmo os remédios aumentaram apenas 41%.
É claro que sobrou dinheiro para comprar eletrodomésticos, que subiram 38%, e sobretudo televisores e rádios, que aumentaram apenas 2%. Cumpre observar que serviços prestados por empresas e profissionais "ricos", como clínicas e escolas privadas, também encareceram muito.
Finalmente, os pobres foram muito favorecidos pela baixa dos juros, que se verificou apenas neste último ano.
Como a inflação caiu mais do que os juros, estes, em termos reais, aumentaram e estão muito altos. Mas o que interessa, nesse caso, são os juros nominais cobrados na venda a prazo de bens duráveis e pacotes turísticos.
Na época da inflação desenfreada, esses juros eram estratosféricos, tornando a compra a prazo quase inviável, sobretudo para os pobres. Agora, os juros embutidos em prestações estão muito menores, o que permite às pessoas de baixa renda comprar muita coisa que não poderiam pagar à vista.
Mesmo pagando juros de cerca de 10% ao mês -sem dúvida extorsivos-, os pobres estão comprando coisas de que antes tinham de se abster. E a compra a prestações lhes é avidamente oferecida pelo comércio, porque os juros cobrados aumentam enormemente a margem de comercialização embutida nos preços à vista.
Os responsáveis pelo Plano Real proclamam com entusiasmo a melhoria das condições de vida das camadas de baixa renda, como se esse tivesse sido o objetivo do plano. Na realidade ela foi, em boa medida, acidental.
O objetivo maior do plano foi a estabilização, que constituía há muitos anos uma aspiração unânime da sociedade brasileira. No máximo, o que eles previam era a eliminação do "imposto inflacionário" que recaía sobre os pobres que não tinham acesso aos bancos.
Mas eles não pretendiam o encarecimento relativo dos serviços, que beneficiou uma parcela importante de trabalhadores, em sua maioria informais. Assim como se opuseram à expansão das compras a crédito, que, a partir de abril de 1995, foram arrochadas por medidas do Banco Central. Só no fim daquele ano as restrições ao crédito começaram a ser suavizadas, o que diluiu no tempo a redistribuição acidental ensejada pelo Plano Real.
Finalmente, se os pobres, sobretudo os que vivem da venda de serviços, ganharam, quem perdeu? A grande massa de assalariados com carteira assinada, que trabalha na indústria, nos bancos e no serviço público. Uma parte ponderável já foi demitida e outra está em vias de sê-lo.
A pressão do desemprego e da "terceirização" permite ao patronato arrochar os salários dos que continuam empregados. Além disso, sofreram perdas adicionais aqueles que têm renda acima da média e consomem serviços privados -de saúde, de educação, de recreação-, cujos preços aumentaram bem mais que sua renda. Houve, portanto, redistribuição de renda dentro da classe trabalhadora.

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