São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 1997
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Mato Grosso do Sul

LUÍS NASSIF

Cem anos de Pixinguinha
Faria bem o presidente da República em instituir 1997 como "o ano Pixinguinha".
Não estaria apenas saudando o músico inigualável, mas reconhecendo seu papel e o do elemento negro na consolidação de uma raça.
O século 19 permitiu o aparecimento de alguns negros ilustres, mas não de uma arte negra. O próprio choro, em que pese a contribuição de um Bonfiglio de Oliveira, ainda não havia sofrido a influência da música negra. Era gênero excessivamente europeizado, fundado na influência da modinha ou no estilo chopiniano, sofisticado, de Ernesto Nazareth.
Nos anos 20, são os do norte que chegam, conduzidos pelos Turunas da Mauricéia e pelo violão portentoso de João Pernambuco.
Mas só quando Pixinguinha e os Oito Batutas aparecem é que a mais forte expressão cultural do povo brasileiro -a música popular- começa a tomar forma.
Suas viagens à América Latina e sua histórica excursão a Paris, levando o maxixe, pela primeira vez lançam as sementes da globalização da música popular brasileira, precedendo o próprio Villa-Lobos.
Conta Altamiro Carrilho que o clássico "Lamentos" foi composto na volta da viagem -que havia sido financiada pelos Guinle.
A sociedade carioca decidiu homenagear o músico que encantara Paris -porque Paris ditava a moda, aliás. Pixinguinha chegou à homenagem e não conseguiu entrar pela porta da frente. Entrou pelos fundos e respondeu ao preconceito com uma jóia que poucos brancos, no século, teriam condição de compor.
Nas décadas seguintes, são os negros, como Pixinguinha, os cantores do morro, como Ismael Silva, os negros de alma, como Noel, os pardos e nordestinos, como Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, que conduzem o Brasil em sua primeira inserção competitiva no mundo.
Reside aí a importância extraordinária desses artistas. Enquanto a elite ou resistia à abertura ou se comportava como macaquitos, tentando reproduzir nos trópicos o clima europeu, os negros e pardos criavam uma cultura.
Recebiam sem preconceito ou complexos de inferioridade a influência externa, elaboravam em cima dela e devolviam uma música toda própria, criativa, que ajudaria a consolidar valores nacionais.
Irônicos, por vezes debochados, bem-humorados, líricos, tornaram-se os herdeiros diretos dos poetas líricos que tão bem reproduziram a alma brasileira no século 19.
Mais do que obras-primas, Pixinguinha e sua raça ajudaram a criar um país.
No momento em que o Brasil enfrenta o desafio da globalização, é o símbolo máximo de como é possível encarar o desafio e vencê-lo.
Para um país em formação, que se iniciou há menos de cem anos, que começou a se firmar há menos de 60 anos, ainda é emocionante testemunhar o nascimento de novas nações interiores.
É o caso de Mato Grosso do Sul. Como todas as demais nações brasileiras, seu primeiro brado de afirmação é a música -pungente, lindíssima, a mais nova estrela na constelação musical brasileira.
Seu brado de auto-afirmação é "Sonhos Guaranis", de Paulo Simões e Almir Sater. O desabafo "Se não fosse a guerra / Quem sabe hoje era / um outro país" -cantada pelo coral infantil Canto do Futuro, na coleção "Mato Grosso do Som"- é apenas amuo de adolescente.
Com tal sensibilidade, mesmo na forma de guarânia, o Estado do futuro jamais deixará de ser Brasil.

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