São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Saúde é conquista da revolução cubana

COSETTE ALVES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Folha - Conchita, o que significa pertencer ao Birô Político?
Conchita Fernández - O significado mais importante dessa nomeação é a demonstração do respeito que se tem no mais alto nível político do nosso Estado à ciência e à saúde.
O que eu faço ali é cumprir o dever de representar o que é a ciência dedicada especialmente ao desenvolvimento da saúde, da biotecnologia, dos novos medicamentos em Cuba. Poderia ter sido qualquer outra pessoa, a minha escolha é a representação da importância que a saúde tem no meu país.
Folha - Cuba está atravessando difíceis momentos econômicos. Qual é o impacto desta crise no seu trabalho, nas pesquisas?
Fernández - Eu creio que o mais importante é reconhecer que já havia duas riquezas muito grandes acumuladas neste campo da biotecnologia e das ciências biofarmacêuticas em Cuba. Uma delas era os investimentos em escala na biotecnologia. Indústria e equipamentos com custos muito elevados já estavam instalados quando chegou o momento da crise, que chamamos "o período especial".
Mas, maior do que essas riquezas, são os recursos humanos que foram preparados e que continuamos a preparar ao longo de todos os anos da revolução. E isso não pode ser feito, com todo o dinheiro do mundo, em 24 horas.
O investimento em recursos humanos é o único que demora mais e que tem mais consistência do que dinheiro. É simplesmente dar prioridade. Às vezes com mais, às vezes com menos dinheiro, mas pode ser feito. A revolução, com a política do comandante Fidel Castro, se importou, desde o início, com a educação de seu povo.
Essa educação é como uma riqueza acumulada. Uma vez que se possui não se perde mais. E é a maior, porque pode existir um país que tenha muitas riquezas, que não passe por nenhuma crise econômica e que deseje investir no campo da biotecnologia -mas se não dispuser dos recursos humanos será impossível.
Recursos humanos não podem ser importados nas quantidades necessárias para esse desenvolvimento. Nem podem ser feitos de um dia para outro.
Essa é a riqueza maior que possuímos. Quando a crise chegou, as duas coisas maiores estavam firmes: educação e saúde. Obviamente, há uma depressão em relação aos investimentos para a pesquisa. O bloqueio nos afeta.
Folha - A partir de que ano você começou a sentir essa depressão econômica?
Fernández - Por volta de 1991, 1992.
Folha - Você atribui a depressão ao bloqueio ou também ao fim do socialismo na ex-União Soviética?
Fernández - Às duas coisas. Ao bloqueio, que é cada vez fica mais severo e, simultaneamente, à queda do campo socialista, que nos permitia fazer um intercâmbio comercial mais cômodo.
Mas faz parte da minha filosofia de vida acreditar que é nos momentos de crise que mais se aprende. As crises são presentes que nos dá a vida, não são outra coisa.
Como tem dito muitas vezes o comandante Fidel Castro, e eu concordo plenamente com ele, algum dia será preciso fazer um monumento ao "período especial", porque temos crescido muito no momento de maior crise.
E assim tem acontecido comigo na ciência.
Folha - Alguma expectativa de saída do "período especial"?
Fernández - Eu creio que, na mesma linha em que estávamos conversando, a crise é uma escola. Até ser apreendida não acaba.
Nesse sentido, todos aprendemos coisas novas. O dia que aprendermos e estivermos convictos de que sozinhos podemos fazer muitíssimas coisas, a crise vai desaparecer como por magia.
Folha - Qual sua opinião sobre a imagem de Cuba hoje no mundo?
Fernández - Essa é a pergunta mais difícil.
São interessantes os dois sentimentos extremos que há no mundo em relação ao nosso país. Eu desejaria mais justiça na análise.
Um dos sentimentos extremos é o dos que nos fazem críticas, não nos entendem, nos colocam em julgamento, não sabem o que estamos fazendo e nos apelidam até de malucos pelo que fazemos.
Nessa mesma medida, e com igual intensidade, há os que nos dão preferência e dizem que somos a esperança, que estamos demonstrando algo ao mundo, que é para continuarmos resistindo.
Eu acho, simplesmente, que a única coisa que precisamos é que aceitem, que haja compreensão da nossa realidade. Que o que estamos fazendo é a nossa filosofia. Amor ao homem, igualdade. Temos um sonho bonito que são todas essas coisas que levamos anos fazendo com imenso sacrifício.
Eu creio que os sentimentos de repúdio são mais um medo de pensar: "aquilo que eles estão fazendo é o que deveríamos fazer mas não fazemos". E então, face ao medo, criticam. Mas eu acho que não se deve ter medo de fazer o bem, que é uma das sensações mais ricas que existem.
Folha - Tem alguma esperança de que o próximo governo Clinton seja melhor para Cuba?
Fernández - Eu lhe farei uma confissão: procuro nem lembrar que existe Clinton. Essa é a pura verdade. Acho que há também um sentimento de medo em relação ao que nós poderemos continuar demonstrando ao mundo.
E da maneira mais cruel e desumana querem nos apagar. Simplesmente, o que fazem é aumentar a crise para melhorar os ensinamentos de sua "escola". Não ensinarão nada a nós e a todos os que nos olhem com compreensão.
Folha - Quando irá ao Brasil?
Fernández - Em fevereiro, possivelmente, irei ao Rio de Janeiro, pois vão me homenagear com uma condecoração.
Folha - Você poderia dizer qual é o número de crianças que morrem no mundo anualmente por doenças infecciosas?
Fernández - No mundo todo, devido a doenças infecciosas, morrem por ano 12 milhões de crianças.
Folha - E em Cuba?
Fernández - Em Cuba um número bem pequeno. As doenças infecciosas em Cuba já não ocupam nem de longe os quatro ou cinco primeiros lugares de causa de morte.
As doenças infecciosas em Cuba estão totalmente controladas a partir do seu programa de vacinação e de prevenção.
Folha - Qual sua opinião sobre a vacina da Aids. Será descoberta? Vai demorar?
Fernández - Em relação a isso o comandante Fidel Castro disse para mim, um dia, que era a primeira vez que não me via otimista.
Quanto mais trabalho com vacinas mais fico convencida e gosto de que delas deve-se esperar o que delas deve-se esperar, nem mais nem menos. Tenho medo de que se transfira às vacinas uma série de esperanças, uma confiança que deveria ser depositada em outras atitudes ou outros aspectos.
Eu acho que prevenção, qualidade de vida ou saúde dependem de muitas coisas. As vacinas têm o seu espaço, mas é pequenino. Sinto algum pesar quando, cada vez que há alguma epidemia, dizem: "faça vacina para isto, faça vacina para aquilo". Não é só com vacina.
O caso da Aids é um exemplo típico. A Aids é um desafio à ciência, à imunologia e à medicina. Mas não é apenas isso. Acho útil a interpretação de que a Aids é uma denúncia social. Da falta de muitas coisa. Poderia resumir dizendo que é também consequência da falta de amor entre os homens. Da solidão. É daí que vem a droga. Depois vem a promiscuidade.
Portanto, eu não acho que a Aids será resolvida só com uma vacina.
É complicado para mim como cientista dizer, mas sinto assim. Isso não quer dizer que não devamos fazer o máximo para descobrir a vacina. Mas é preciso fazer mais, muito mais que vacinas.
Folha - Há quantos anos você está no instituto e quando começou?
Fernández - O instituto não existia antes. Em 1982 começou uma epidemia de meningite por grupo B aqui em Cuba e era necessário fazer alguma coisa.
Não existia no mundo vacina para essa doença. Foi pedido para umas poucas pessoas que começassem a trabalhar do ponto de vista da investigação. O Ministério da Saúde já estava tentando fazer alguma coisa no aspecto de diagnóstico e tratamento.
Folha - Você foi convocada para o trabalho?
Fernández - Sim. Eu trabalhava na direção de controle de qualidade das vacinas da Produções Biológicas Castro Botafinder, que ainda hoje produz vacinas. Eu tinha começado um desenvolvimento de pesquisadores dentro dessa empresa. Por isso fui convocada.
Folha - Quantos vocês eram?
Fernández - No começo, muito poucos. Dois. Nada mais que dois. Eu e outra pesquisadora, que trabalha atualmente aqui em Finderes, a doutora Mercedes.
Folha - Como foi o começo e a descoberta?
Fernández - A princípio, achávamos que a epidemia era por A e por C e que seria tão fácil como fazer uma vacina para A e C, que existia desde a década de 70.
Logo vimos que a epidemia não era por A e por C, era por B e para essa não havia vacina.
Para produzir essa vacina, não havia meio de se proteger por meio da vacinação. Quando uma vacina já existe e vai ser produzida, simplesmente, você se protege com uma vacina que já existe. Porém, para vacinas novas não há vacina. E como se proteger?
Era preciso trabalhar com microorganismos que estavam em ninho patogênico vivo. Expostos à contaminação. Mas não há alternativa. Assim trabalhamos e assim ainda se trabalha.
Folha - Quanto tempo depois vocês começaram a ver progressos?
Fernández - Em 87 chegamos a um volume de vacina suficiente para fazer uma prova em voluntários. Na realidade, os primeiros voluntários fomos nós mesmos, os investigadores que, naquela época, éramos muito poucos -entre 12 e 15 pessoas. Isso foi em 85.
Entre os cientistas não é ético pedir a alguém que se injete algo que não tivesse sido injetado em nós mesmos, que sabíamos o que havia na seringa; então nós injetamos e vimos que não havia danos.
Depois, precisamos de mais voluntários. Eles começaram a aparecer, entre estudantes de medicina, o Exército Juvenil do Trabalho e grupos que foram mostrando não só que a vacina era inócua mas que também dava resposta de anticorpos que podiam proteger contra a doença. Depois, foi necessário fazer o teste em crianças. Nossos filhos foram os primeiros.
Folha - Quando você resolveu testar a vacina em você mesma, tinha certeza de que não haveria dano ou foi uma aposta?
Fernández - Havia a certeza por provas pré-clínicas que se fazem em bichos, mas não em humanos.
Folha - Você não sentiu medo?
Fernández - Não, eu estava segura de que não haveria dano.
Mais medo poderia ter sentido com meus filhos -mas não senti.
Folha - Quantos filhos você tem?
Fernández - Dois, grandes. A menina já se formou em bioquímica e trabalha em um centro do pólo científico. O menino estuda física.
Folha - Como o instituto se mantém financeiramente?
Fernández - O instituto nasceu e cresceu a partir dessa vacina.
Naquele momento, não éramos um instituto nem tínhamos nível para sê-lo; éramos um laboratório... Um pequeno grupo que trabalhava e crescia com a ajuda de todo mundo... Depois que fomos crescendo começou a vacinação em Cuba e a vacinação no Brasil.
Foi um desafio muito grande para nós, porque tivemos que fazer rapidamente muitas vacinas.
Folha - O Brasil compra muitas vacinas?
Fernández - Muitas, já chegou a encomendar, num ano, 15 milhões de doses, o que é um desafio muito grande, porque em vacinas uma das coisas mais complicadas é a escala industrial.
Eu não sei se você sabe que a primeira vacina aplicada no mundo ocidental fez 200 anos em 96. E em 200 anos, em condições de comercialização, não chegam a 20 as vacinas existentes.
Em Cuba é algo que se faz com muita facilidade, em relação a outras partes do mundo, pelas características que temos. Em qualquer canto do país há uma clínica, um hospital, um médico da família.
Há condições para se fazer a vigilância pós-vacinação, o que é chamado de fase 3, e também a fase 4.
Caso não se conte com um sistema adequado é muito difícil fazer o acompanhamento. Normalmente, quando vão ser provadas as vacinas, os países do Primeiro Mundo não obtêm voluntários com facilidade.
Eles solicitam grandes quantias de dinheiro ou simplesmente não se dispõem a servir de voluntários.
Então, acabam indo aos países do Terceiro Mundo, onde os voluntários não sabem o que estão fazendo com eles ou o que estão lhes injetando. São "voluntários", entre aspas.
Folha - E aqui em Cuba?
Fernández - Aqui em Cuba as pessoas convivem com uma cultura médica e uma cultura política muito altas. Elas entendem o que fazem. São voluntários conscientes, confiam no desenvolvimento da ciência e na ética necessária. O cuidado com eles é essencial.
Folha - O que é a fase 4?
Fernández - A fase 4 é quando já está autorizado o uso, sem riscos.
(CA)

Texto Anterior: Saúde é conquista da revolução cubana
Próximo Texto: Médico prevê vacina da Aids em quatro anos
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.