São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 1997
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"Eu sou a Porta!"

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Fui fazer exame de vista para revalidar a carteira de motorista, estacionei o carro na praça do Jóquei e ouvi uma voz gritando: "Eu sou a porta". Para falar a verdade, devia ser: "Eu sou a Porta!" -com direito à exclamação e à maiúscula. Olhei para o dono da voz, um sujeito barbado, alto, vestido como um beduíno -ou, pelo menos, como ele achava que devia ser um beduíno.
Apesar da roupa, tinha o molejo do malandro carioca, coisa do largo dos Pilares, Inhaúma, quem sabe Cordovil ou Irajá. Olhava-me com fome, eu era o único transeunte do pedaço e a mim ele se agarrava para comunicar a verdade que o entupia: ele era a porta.
De início, não dei muita bola, tinha o que fazer, provar às autoridades que ainda sou capaz de distinguir um sinal verde do sinal vermelho. Mas a insistência com que o beduíno de Cachambi -outra hipótese que me ocorreu- proclamava sua condição de porta era dramática e, devo confessar, inapelável. Parei para ouvir.
Ele se entusiasmou com o escasso ouvinte que arranjara e depois de reafirmar que era a Porta comunicou que por ele passavam os eleitos do Senhor. Era mais do que o caminho, a verdade e a vida -como reles imitadores se intitulavam por aí. Em sendo Porta, ele separava a verdade do erro, o vício da virtude. Que eu me penitenciasse dos meus pecados e tivesse sabedoria para atravessar a porta que liga o nosso reino ao reino de Deus.
Meu problema, naquele momento, era saber se ainda poderia distinguir um sinal vermelho do verde e não o vício da virtude. Ele percebeu que ia perder o discípulo efêmero e lançou-me a maldição: "Ai daqueles que ouvem e não sabem!". Achei a coisa meio enrolada, aliás, todas as religiões são um pouco enroladas. Fui tratar da minha vida, mas levei comigo a desconfiança de que, mais uma vez, perdera a oportunidade de merecer a salvação.

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