São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 1997
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A reforma da saúde

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA

No discurso em que o presidente Fernando Henrique Cardoso deu posse ao novo ministro da Saúde, Carlos César Albuquerque, declarou que, como 1996 foi o ano da educação, espera que o ano de 1997 seja o da saúde.
Estou confiante que isso possa acontecer, não apenas pelas qualidades que o novo ministro revelou em sua vida pública anterior -principalmente no trabalho que desenvolveu no Hospital das Clínicas de Porto Alegre-, mas também porque os ministros Adib Jatene e José Carlos Seixas deixaram pronta -e aprovada em todos os níveis do sistema de saúde brasileiro, inclusive no Conselho Nacional de Saúde, do qual o novo ministro era membro atuante- uma grande reforma administrativa do Sistema Único de Saúde.
Essa reforma implica a efetiva municipalização da saúde pública, por meio do fortalecimento do sistema de atendimento básico municipal, que será a porta de entrada obrigatória na rede hospitalar, e da transferência para os municípios do controle dos serviços prestados pelos hospitais e ambulatórios especializados.
Para isso, a estratégia consiste em distribuir aos municípios os recursos da União para a saúde na proporção do número de habitantes, em vez da proporção dos leitos hospitalares do município, como hoje ocorre.
Dessa forma, será possível às autoridades de saúde locais e a seus respectivos conselhos municipais de saúde assumirem a responsabilidade da saúde de seus munícipes. O controle será realizado a partir da demanda, representada pelas autoridades municipais, e não pela oferta constituída pelos hospitais.
Dois são os pressupostos dessa reforma. Primeiro, que a oferta de leitos hospitalares é hoje muito maior do que a demanda. Existem hoje no país cerca de 25 mil, mas os internamentos estão em torno de 13 mil. Segundo, que o controle municipal desses fornecedores de serviços de saúde é muito mais efetivo do que o controle federal.
A velha estratégia de montar centralmente um sistema de oferta jamais funcionou. No fundo, representava uma idéia de planejamento integral hoje superada. A nova idéia é a de concentrar os esforços do governo no financiamento e no controle dos serviços prestados por esses serviços, em lugar do seu oferecimento direto pelo Estado.
A organização da oferta com apoio do Estado continuará nos hospitais universitários e de maior complexidade. Ocorrerá ainda, subsidiariamente, naqueles locais onde existe deficiência de equipamento hospitalar e ambulatorial, por meio de consórcios municipais. Os hospitais e ambulatórios deverão, em princípio, ser organizações públicas não-estatais, competindo entre si no fornecimento de serviços ao SUS. O objetivo é sempre montar um sistema hierarquizado e regionalizado, mas a partir da demanda dos serviços controlada pelo Estado por meio dos municípios. As ações pelo lado da oferta serão, portanto, pontuais e complementares.
As idéias-força do novo sistema são: 1) tetos físicos e financeiros de gastos em saúde (AIHs) distribuídos aos municípios por intermédio dos Estados, de acordo com a população residente; 2) responsabilização compartilhada da União, dos Estados e dos municípios; 3) municipalização do controle dos hospitais, do credenciamento à aprovação das contas; 4) prioridade à capacitação das prefeituras para desenvolver seus sistemas de atendimento básico, que serão a porta de entrada para hospitais e ambulatórios especializados; 5) entrega do Cartão Municipal de Saúde a cada cidadão; 6) transformação dos hospitais estatais em organizações públicas não-estatais, competitivas com as entidades filantrópicas e privadas; 7) reafirmação da prioridade à medicina sanitária e preventiva.
No sistema que está terminando, os hospitais recebiam diretamente do Ministério da Saúde as quotas de AIHs. Era a raposa dentro do galinheiro. Isso só não acontecia nos poucos municípios em que já foi instalada a "administração semiplena", mas, ainda neste caso, os municípios recebiam e repassavam para os hospitais a verba federal segundo os leitos neles existentes, não segundo sua população.
Agora, cada município pagará aos hospitais que prestarem serviço à sua população, estejam eles no próprio município ou nos municípios vizinhos, desde que os pacientes tenham sido por ele encaminhados. Só nos casos de emergência os hospitais poderão atender diretamente.
A reforma do SUS definida pela Norma Operacional Básica 1996 do Ministério da Saúde nada tem a ver com o PAS. Neste sistema, não há separação entre oferta e demanda, e a oferta é privatizada, em vez de se tornar pública não-estatal. O atendimento de saúde básico e os serviços hospitalares menos complexos são privatizados pela formação de cooperativas de médicos.
Como as cooperativas recebem por cidadão e não por serviços prestados, o estímulo implícito é o de atender o mínimo, transferindo para fora do PAS os atendimentos mais complexos. Temos, assim, um sistema caro e perverso, que não garante o uso ótimo dos recursos escassos existentes.
Os opositores à reforma descentralizadora do SUS são aqueles hospitais particulares ou pretensamente filantrópicos que o fraudam com a desculpa de que os preços pagos pela União são irrisórios. De fato, são. Mas, se os recursos forem complementados pelos Estados e municípios, como a reforma em vias de ser implantada estimula, e mais bem controlados, por um sistema como o descrito, o círculo vicioso será rompido, podendo-se garantir atendimento infinitamente melhor para a grande maioria da população, que não tem acesso a seguros de saúde privados.

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