São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 1997
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A voz das ruas

FÁBIO WANDERLEY REIS

O principal argumento em favor de assegurar a possibilidade de reeleição imediata para o presidente Fernando Henrique é o de que assim se estariam ampliando as opções oferecidas ao eleitor, que teria entre os candidatos o próprio presidente, com contas a prestar do primeiro mandato.
O argumento relativo à suposta qualidade da administração executada se subordina a este, pois o eleitor é, naturalmente, o juiz decisivo dessa qualidade.
Admitir isso, porém, está longe de significar a adesão à idéia que erige o apelo ao eleitorado em princípio sacrossanto, a ser adotado para ungir e validar o que quer que seja.
Sob a forma da defesa do recurso ao plebiscito ou à consulta popular, essa idéia tem estado insistentemente presente nos debates sobre a reeleição, suscitando aparente unanimidade. Proposta em editorial da Folha e em artigos de jornal, invocada pela oposição de direita e esquerda nos embates congressuais com o governo, "a voz das ruas" (rouca!) é agora brandida pelo próprio presidente como carta na manga e trunfo final contra a resistência parlamentar à emenda em discussão.
Julgo que estamos diante de sério perigo. Como constitucional que é, nossa democracia se distingue por amarras legais e institucionais que não lhe permitem conviver senão moderada e problematicamente com o recurso aos mecanismos da democracia direta, que se caracteriza por oscilar ao sabor das maiorias cambiantes.
Vale lembrar que na Atenas clássica, o modelo por excelência da democracia direta, os cidadãos trataram de proteger-se contra a demagogia e certa tendência à irresponsabilidade dessa forma de governo: por meio do ostracismo, por exemplo, ou da regra, menos conhecida, que permitia acusar e punir proponentes de medidas que se revelassem impróprias, ainda que a assembléia de cidadãos as tivesse aprovado.
No Brasil do momento, mesmo se admitirmos que a propensão à demagogia não é um traço pessoal de Fernando Henrique, temos clara ameaça de que a relação plebiscitária estabelecida entre o presidente e o eleitorado se transforme em fator perturbador do quadro institucional, com consequências imprevisíveis.
Não creio que o governo se atreveria, diante do fato consumado de derrota no Congresso, a recorrer ao plebiscito para reverter a decisão. A alternativa menos dramática, porém, da qual se cogita abertamente, é suficientemente ruim: a de apelo ao plebiscito previamente à deliberação parlamentar, diante da evidência de dificuldades insuperáveis para aprovação da emenda.
Ignoro se, juridicamente, a eventual convocação do plebiscito nessas circunstâncias teria o efeito de sustar o processo de deliberação no Congresso sobre a emenda. Na verdade, nem estou certo de que o expediente seja juridicamente aceitável quando aquele processo já se acha em andamento.
De outro lado, é naturalmente possível alegar que a convocação do plebiscito seria ela própria obediente aos preceitos legais estabelecidos. Mas, em qualquer caso, parece bem clara a delicada situação institucional que se produziria, com o Executivo recorrendo às ruas contra as disposições que encontre entre os membros do Legislativo no exercício normal de suas funções.
Seja como for que se resolva o problema, porém, o preocupante é aquilo que o bonapartismo da solução plebiscitária para uma questão potencialmente tão grave representaria como precedente -sobretudo com um presidente possivelmente fortalecido com uma inédita recondução ao poder e num quadro composto pelas frustrações e azedumes que daí poderão resultar. Que esperar em impasses futuros? Utilizado com moderação, o xingado balcão de negócios parece preferível.
O governo tem, certamente, o direito de cobrar clareza de supostos aliados. Mas, por suas próprias artes, articulações e cronogramas, enredou-se em situação delicada, com evidente desgaste. De sua parte, atirando-se pessoalmente e com gana à briga pela reeleição, o presidente parece disposto a abrir mão do equilíbrio que anteriormente procurava exibir. Motivo a mais de preocupação.

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