São Paulo, segunda-feira, 20 de janeiro de 1997
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Pintora usava seu bom senso na cozinha

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Será que nos importa o que comia Georgia O'Keeffe? Talvez... Fazia parte de toda uma estética coerente de vida. Tinha estilo a miss O'Keeffe. Morena, angulosa, neta de húngaros e irlandeses, não se sabe porque sobrou-lhe aquela cara única, índia, moura, boa estrutura óssea, misto de Camille Paglia, Patricia Neal e la Bolkan.
Dona de uma vontade de ferro sabia desde pequena que seria artista. Saiu pela vida, vestida asceticamente de branco ou preto, perseguindo seu sonho.
Acho que se pudesse teria passado a vida pintando sem pensar em comidas ou apenas observando-as atentamente para pintá-las depois, em grandes, enormes detalhes.
Mas havia que sobreviver. Sabemos que lia livros de cozinha antes de dormir. Quais? Lelord Kordel e Adelle Davis, por exemplo, e ainda a bíblia americana, o "The Joy of Cooking", entre outros.
Kordel escrevia sobre medicina preventiva e O'Keeffe guardava na despensa fresca, em vidro bem fechado, uma mistura em pó que ele recomendava fosse acrescentada às sopas. Como a pintora viveu até os 98 anos vale a pena saber a receita. Partes iguais de leite em pó não instantâneo, farinha de soja e levedo de cerveja mais meia parte de alga em pó.
O livro de Adelle Davis poderia ser tirado hoje da biblioteca de uma academia de ginástica. Vendido aos milhões era "Let's Eat Right to Stay Fit". Às vezes a autora é considerada uma destas malucas carismáticas, mas, apesar dos erros, era uma mulher de idéias interessantes.
Foi apelidada de Adelle Vitamina, tamanha sua obsessão com o assunto. Achava que todo tipo de doença, de erisipela a tuberculose era problema de deficiência alimentar. Aconselhava doses maciças de proteínas, pílulas suplementares e métodos de cozimentos adequados para que se conservassem os nutrientes.
E Georgia O'Keeffe? Como se comportou gastronomicamente, acossada pelos profetas da saúde? Na minha opinião foi salva pelo bom senso e pela sua sensualidade.
Adotou um estilo de comer que tinha tudo a ver com ela. Comida simples, sazonal, honesta, boa e bonita, como na fazenda do Midwest de sua infância.
Em Nova York foi morar no 30º andar de um dos primeiros arranha-céus de Manhattan, o Shelton Hotel, justamente para se livrar do fogão e poder ficar pintando o tempo todo a cidade que nascia para cima. Nesgas douradas de crepúsculos do East River, o Chrysler subindo com seu decô prateado, o seu próprio prédio, o Shelton, manchado de sol.
No Novo México, dona das planícies imensas e montanhas enrugadas, podia entrar em contato com a natureza como gostava e, assim que pôde, fez-se dona de uma horta, de um pomar e de um jardim.
Sua comida saia quase toda de lá, colhida fresca, na hora certa, com a supervisão dela. O grão para o pão era moído lá, a coalhada, muito leve, rompia-se ao toque, ervas e mais ervas para seus temperos, saladas de mil folhas, ovos comprados na vizinha. Dava receitas, instruía as cozinheiras e era absolutamente exigente quanto ao paladar e frescor da comida de todo dia. Tudo ao seu redor tinha que ser bonito e simples. Uma pequena história me fez entender a sua exigência para com os menores detalhes do ambiente que a cercava sem admitir falhas.
Quando Stieglitz, o marido, morreu em Nova York, ela encomendou o mais singelo caixão de pinho, e passou a noite retirando o forro de cetim cor-de-rosa e substituindo-o penosamente por um forro de linho branco.
Daí que já adivinharam que suas cozinhas no Novo México eram grandes, arejadas, brancas, com janelas fazendo molduras para as paisagens de seus quadros. Que as mesas eram retângulos com bancos para sentar. A louça, branca, as travessas, de inox, os guardanapos, de algodão desfiado e o jogo americano, de palha trançada. Punha flores em vasos transparentes e não resistia a uma pedra de formato diferente. Nem a uma ossada polida achada no deserto.
Confessou a uma acompanhante que nunca conseguiu ficar sem empregados e que quando ficava deixava a louça se empilhar, sem remorso, sabendo que voltaria a ela quando acabasse de pintar. Ainda bem.

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