São Paulo, quarta-feira, 22 de janeiro de 1997
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Uma carteira de trabalho teatral

ELIO GASPARI

Há no governo FFHH uma obsessiva teatralização do moderno. O ministro do Trabalho acaba de lançar um novo modelo de carteira de trabalho. Os dados pessoais serão impressos por computador, aquela máquina cujo imposto de importação está em 30%, contra 8% para a comida de gato. Suas páginas serão plastificadas, invioláveis.
Vale perguntar se alguém já encontrou uma pessoa que estivesse incomodada com a velha e soberana carteira. Se estava com defeito, não se sabia. Sua expedição é um dos serviços públicos que melhor funcionam no país. Tudo bem, o ministro quer mudá-la, a troca será gratuita e só um espírito implicante haveria de reclamar.
A teatralização do moderno se dá quando governo anuncia um progresso (a nova carteira), mas na realidade administra um regresso (o declínio do trabalho legal).
Sendo presidente da República o professor Fernando Henrique Cardoso e ministro do Trabalho o professor Paulo Paiva, a repórter Andrea Dunningham revelou que no ano de 1996 o número de trabalhadores brasileiros com carteira assinada foi minoria diante da soma dos autônomos e dos que trabalham sem registro.
Em vez de cuidar do trabalho, modernizam a carteira. Logo esse documento que, pelo andar da carruagem real, arrisca se tornar irrelevante (ou mesmo perigoso) ao fim do Segundo Reinado de FFHH.
Em 1983 os trabalhadores com carteira assinada eram 56% do mercado. Hoje são 47%. Os outros se dividem em dois blocos.
Um, o dos autônomos, é o que mais tem crescido. Passou de 16,5% em 1983 para 22,7% no ano passado. Eles fazem parte do imaginário do professor Cardoso: "Há empresas que estão terceirizando os serviços, quer dizer, demitem o empregado, ele cria uma microempresa e presta serviços para a mesma industria onde trabalhara antes".
No mundo encantado que o Plano Real criou, esse sujeito é um analista de sistemas, trabalhava num grande banco, foi posto na rua, abriu uma empresa de consultoria e está ganhando dinheiro como nunca. Lenda. Quem vai do fracasso à fortuna montando empresas de consultoria (ou banco próprio) são os ex-mandarins da área econômica. O IBGE informa que 74% dos brasileiros que trabalham por conta própria estão na construção civil e no comércio. A capital com maior percentual de trabalhadores sem carteira assinada é Recife (29%). Em São Paulo, estão em torno de 12%. Não é difícil desconfiar que a coisa está mais para pipoqueiro do que para Bill Gates fundando a Microsoft, ou mesmo uma fábrica de comida de gato.
A migração da mão-de-obra para o setor de serviços está desqualificando a força de trabalho nacional, e os professores Cardoso e Paiva devem saber disso. Se não sabem, podem procurar o professor José Marcio Camargo, na PUC do Rio.
Mas FH acredita na sua política: "Esses brasileiros que trabalham por conta própria e os que não têm carteira assinada são os que tiveram maior aumento de emprego e renda desde o inicio do Plano Real".
Falta nexo ao raciocínio. Todos os brasileiros de baixa renda tiveram aumento de renda com o Plano Real, inclusive os que não sabem fazer conta de subtrair e os que fazem hemodiálise. Isso não significa que o aprendizado das quatro operações se tornou irrelevante, ou que fazer hemodiálise é coisa parecida com escovar os dentes.
O crescimento dos autônomos nada tem a ver com progresso. É uma viração pouco produtiva, mas não prejudica ninguém. Já o crescimento da força de trabalho sem carteira assinada significa aquilo que os burocratas chamam de mercado informal de trabalho, porque não tem coragem de chamá-lo pelo nome: contratação ilegal.
Quando um empregador não assina a carteira de seu funcionário, ambos deixam de contribuir para a Previdência Social. Resultado: o trabalhador só vai se aposentar na terceira encarnação, e o governo vai repetir que a Previdência precisa de uma reforma. Além disso, quase sempre lhe tunga os direitos trabalhistas. (O Ministro da Reeleição, Sérgio Motta, tinha alguns desses espécimes na fazenda que mantém em sociedade com seu grande amigo em Unaí. Registrou-os pouco antes do lançamento da candidatura do professor Cardoso à Presidência.)
Beleza de projeto para um país: o sujeito perde o velho emprego, mas ganha uma carteira nova.

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