São Paulo, quarta-feira, 22 de janeiro de 1997
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Reeleição e plebiscito

ALMINO AFFONSO

Chega ao plenário da Câmara dos Deputados o debate sobre o direito à reeleição de presidente da República, governadores e prefeitos, que a emenda constitucional nº 54/95, de autoria do nobre deputado Mendonça Filho, busca instituir. Como é evidente, ela cria condições jurídicas, se vier a ser aprovada, a que o presidente Fernando Henrique Cardoso volte a candidatar-se na eleição presidencial de 1998.
Há, entre mim e o chefe do governo, de longa data, relações de amizade que muito me honram, acrescidas à admiração que lhe tenho pela inteligência privilegiada, pela cultura reconhecida além de nossas fronteiras, pela honradez pessoal que se projeta como marca indelével de sua administração.
Não obstante o que proclamo, vejo-me na contingência de manifestar-me -de maneira frontal- contra a aprovação da emenda constitucional nº 54/95, que, em sua abrangência, cria normas incompatíveis com o nível de nosso desenvolvimento democrático.
Desde logo, cabe reconhecer que a democracia entre nós ainda é capenga, sujeita às deformações de um mandonismo autocrático, ostensivo ou emascarado, mas indisfarçável em nossa prática política.
Por desgraça, é no processo eleitoral que essa fragilidade mais se revela. Os titulares dos cargos, no âmbito do Poder Executivo, tudo fazem para assegurar a eleição de seus respectivos sucessores. Não preciso dar exemplos dos abusos a que se entregam, porque os pactos escusos são tantos, em nossa história política, que me dispenso recordá-los.
Transplante-se essa experiência, aprovando a emenda constitucional nº 54/95, para o cenário que resultará da instituição do direito à reeleição de presidente da República, governadores e prefeitos, e se terá potencializado ao extremo o uso dos mecanismos que o poder confere ao governante, contanto que seja facilitada a continuidade no cargo.
Os que defendem a reeleição com frequência encarnam a tese na figura do presidente Fernando Henrique Cardoso. Por acaso pensam que essa reforma política se esgotará nesta gestão presidencial, dentro de dois anos? Que faremos com o instituto da reeleição quando, para escândalo nacional, algum malandro ressurgido assumir o poder? Recorrer-se-á, a toque de caixa, a nova emenda constitucional? Conspiraremos -os que saibam fazê-lo- batendo às portas dos quartéis, como vivandeiras arrependidas?
Em nossa tradição constitucional, como norma correlata que veda o direito à reeleição, sempre prevaleceu a inelegibilidade para o cônjuge e parentes consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do presidente da República, de governadores de Estado e de prefeitos, no âmbito da jurisdição do respectivo titular.
Na medida em que a referida emenda constitucional seja aprovada, já não remanescerá lógica alguma em que se impeçam as aludidas candidaturas, em concomitância com a reeleição do presidente, do governador, do prefeito. A norma impeditiva será revogada, e as cortes familiares se imporão pelo país afora.
No âmbito dos Estados, as consequências políticas da aprovação da emenda constitucional serão imensas, propiciando ao governador -candidato à reeleição- um poder que anula, na prática institucional, a equipotência dos poderes.
O professor Fernando Luiz Abrucio, num excelente estudo sobre as relações entre Executivo-Legislativo (tomando como universo 15 unidades federativas), mostra como se vem gerando o "ultrapresidencialismo estadual". Se assim é hoje, imagine-se o que será quando -pelo simples fato de poderem candidatar-se à reeleição- os governadores formalizarem o aulicismo a todos os níveis.
Se querem romper uma tradição secular, contrária à reeleição, que ao menos se consulte o povo, mediante um plebiscito, valendo-se dessa revolução institucional que a Constituição de 1988 consagra: "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente". Deixemos que o povo nos diga, de maneira direta, se quer instituir o direito à reeleição.

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