São Paulo, sábado, 25 de janeiro de 1997
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Direito ao aborto

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Hillary Clinton, na quarta-feira, reacendeu o fogo da discussão sobre o aborto, ao acentuar perigos enfrentados por mulheres baianas na interrupção da gravidez, sem cuidados médicos adequados. Tenho opinião manifestada sobre o tema, em meu livro "Direito Constitucional Brasileiro" (Editora Saraiva, 2ª edição, 364 páginas), onde observo que a Carta de 1988 dá garantia à vida, plena, irrestrita, posto que dela defluem as demais, até mesmo contra a vontade do titular.
Partindo dessa premissa para o exame do aborto, anotei que a realização deste põe em confronto os direitos do nascituro (protegido antes mesmo de nascer), da mulher e, conforme o caso, do pai.
A senhora Clinton agitou a controvérsia, que tem estado no noticiário em maior amplitude. Nas últimas semanas tem-se falado muito a respeito do abortamento em casos nos quais é possível determinar a absoluta inviabilidade do feto e da conveniência de sua legalização. O conflito fundamental envolve aspectos médicos, éticos, religiosos e políticos, além de jurídicos.
Lembrei, no referido livro, atos de agressão ao feto, que não despertam a mesma emoção, embora graves. O álcool, ingerido em excesso pela mãe, pode levá-lo à morte ou à deformação permanente. O cigarro é um dos provocadores, segundo os cientistas, da "morte do berço". O consumo de tóxicos por mulheres viciadas grávidas põe em risco a vida do nascituro.
A evolução científica gera questões novas. De uma delas (o destino do embrião laboratorial, não utilizado) tratei recentemente nesta coluna. Se se considerar que o embrião tem vida ou alma, para os que acreditam nela, fica evidente a impossibilidade de o destruir. Tenho defendido a tese de que o embrião "in vitro" ou conservado por processos de congelamento não é um ser humano. Só merece proteção do direito quando tenha vida no ventre da mulher que se disponha a recebê-lo.
Outro caso, colhido no progresso da ciência, consiste no aprimoramento das técnicas de verificação das condições do feto, desde os estágios iniciais da gravidez. Com elas se determina, com alto grau de certeza, a possibilidade de vida inteligente do nascituro. Um feto sem cérebro, para ficar no exemplo mais dramático, deve ser dado à luz? Parece mais razoável o abortamento legal, desde que o controle das verificações seja tão rigoroso a ponto de não permitir o sacrifício de nascituros viáveis.
Há denominações religiosas que levam sua contrariedade ao excesso, minoritário, de não admitir o abortamento quando a mulher é estuprada. Sob escusa de defender a vida do feto, condena a mãe a uma espécie de morte psicológica, para manter o resultado do crime hediondo.
No referido livro "Direito Constitucional Brasileiro" formulo perguntas a respeito de outros temas. Admitamos que o recém-nascido precise, para sobreviver, de uma transfusão de sangue. Posso obrigar a transfusão se for visceralmente contrária às convicções religiosas de seus pais -garantidas pela Constituição? Parece-me que sim, pois a vida é o bem maior, sobretudo quando seu titular não tem condições de a defender.
A Igreja Católica tem sensíveis argumentos contra o aborto e os defende com pertinácia. Contudo, já se viu com Galileu, Copérnico e Darwin que o progresso da ciência impõe mudanças de enfoque no direito e nas religiões. Assim, não é possível continuarmos a pensar o aborto despojado dos avanços científicos deste século. A crítica de Hillary Clinton viu uma parte da questão, a qual, todavia, é infinitamente mais ampla. E não só no Brasil.

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