São Paulo, sábado, 25 de janeiro de 1997
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Doação ou coação?

UBIRAJARA FERREIRA

A lista de indivíduos aguardando um órgão para transplante é crescente em todo o mundo. Nos EUA, são diagnosticados, anualmente, 12 mil novos pacientes com insuficiência renal crônica terminal; no entanto, são realizados, apenas, 8.000 transplantes renais.
Para aumentar a oferta de órgãos é preciso agir em três pontos: a) evitar o desperdício de potenciais doadores (pacientes sabidamente em morte encefálica não notificados); b) criar centros especializados na retirada e na implantação de tais órgãos; c) diminuir os índices de recusa familiar.
Implantar a doação presumida como "salvação da lavoura" é enfocar somente o problema da recusa familiar, além de suscitar questões éticas e sociais de difícil resolução.
Em 1993, nos EUA, foi criada uma comissão de ética da Unos (United Network for Organ Sharing), órgão responsável por tudo que diz respeito a transplante, para analisar os desdobramentos práticos da doação presumida.
Mais de 6.000 americanos foram solicitados a preencher um questionário. Cerca de 70% doariam seus órgãos; porém apenas 32% transmitiram sua vontade à família. Metade dos que não expressaram seu desejo não o fizeram porque nunca foram indagados.
Os motivos da recusa foram desconfiança da comunidade médica e do processo de alocação dos órgãos e crença que o transplante ainda seja experimental e não haja falta de doadores. Fica evidente a desinformação sobre vários aspectos da doação de órgãos.
A partir desses números e pelo fato de 94% considerarem fundamentais campanhas que estimulem as pessoas a manifestar sua vontade à família, a comissão sugeriu que todos os indivíduos, ao obter a carteira de motorista, fossem questionados sobre doação. Tal escolha deveria ser registrada no documento. Essa prática poderia ser facilmente implantada em nosso país.
Quando indagados sobre a doação presumida, 63% dos entrevistados foram contra. "A doação presumida (...) é coerciva, comparada com outros modos clássicos de escolha. O consentimento deve ser expresso, não sugerido." Essa foi a conclusão do estudo.
A Central de Captação de Órgãos da Unicamp foi criada no início de 1994. Seu objetivo é procurar e captar órgãos de maneira ativa, detectando e corrigindo distorções. Na região de Campinas, o índice de recusa, que era de 60% em 1993, caiu para 23% em 1996.
Uma pesquisa realizada em 1994 pela UFPR, entre 75 médicos que trabalham em UTI, revelou, surpreendentemente, que 55% não sabiam os critérios médicos para o diagnóstico de morte encefálica. O Brasil deve aperfeiçoar e estimular tais profissionais para evitar o desperdício de potenciais doadores.
Concluindo, não nos parece necessário lançar mão de medidas coercivas para aumentar o número de transplantes. Basta estruturar as instituições e solicitar que toda a população expresse sua vontade. A doação voluntária é filha da democracia. A doação presumida é madrasta do autoritarismo.

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