São Paulo, sábado, 25 de janeiro de 1997
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Meta a longo prazo

VOLNEI GARRAFA

Paralelamente aos inegáveis benefícios que proporcionou à vida humana, o progresso biotecnológico provocou questionamentos morais até pouco tempo atrás impensáveis. Esse quadro passou a exigir novos ordenamentos jurídicos. Houve um descompasso entre as conquistas científico-tecnológicas e as transformações dos valores morais. A questão dos transplantes de órgãos e de estruturas humanas diz respeito diretamente a esse contexto.
Caso seja aprovada a lei sobre a doação compulsória de órgãos de cadáveres para transplantes -ou "doação presumida", como vem sendo estrategicamente conhecida-, teremos uma reviravolta no princípio jurídico brasileiro, até então afirmativo. A proposta sugere que o cidadão terá que declarar que não é doador. Ora, não é preciso ser especialista em bioética para que algumas questões sejam levantadas.
Citarei algumas: o que acontecerá com a autonomia dos mais de 50 milhões de brasileiros desinformados? E quem se responsabilizará pela segurança dos acidentados graves que chegarem aos desaparelhados prontos-socorros? Onde fica o respeito à dignidade (moral) do corpo do cadáver? Há segurança de que as "listas de espera" serão rigorosamente observadas?
Não acredito que haja maneira de informar convenientemente esses 50 milhões de excluídos do processo decisório. A aprovação da nova lei desenhará um quadro de "consentimento silencioso imposto pela desinformação".
O Congresso deve ter em mente todas as implicações que uma transformação brusca poderá acarretar em futuro próximo. Os problemas que fatalmente gerará são incomparavelmente mais danosos que os possíveis benefícios. A aprovação extemporânea do "consentimento presumido" redundará em sérios prejuízos a médio e longo prazos. O referido princípio pode ser considerado uma meta futura em direção à qual todos os países deverão caminhar.
O "consentimento presumido" é moralmente justificável. No entanto, é prudente que se caminhe devagar.
Um dos principais problemas para sua implantação reside no sistema sanitário brasileiro, completamente despreparado. Não há, por exemplo, um sistema nacional de captação e registro de órgãos. Não há divulgação e controle público das listas de espera.
Lembro, ainda, que o problema da escassez de órgãos para transplantes não é decorrente da falta de órgãos, mas especialmente da ausência de estrutura confiável para a captação, a recepção e a distribuição desses órgãos.
Mais condizente com a realidade seria a proposta da OAB de inclusão em todo documento público fornecido pelo Estado do consentimento ou da negativa das pessoas. A proposta incluiria a obrigatoriedade de criação de centros regionais de captação e distribuição de órgãos. Apenas dessa forma e levando em conta seu próprio progresso moral o país alcançaria uma solução suficientemente equilibrada (politicamente) e justa (moralmente).

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