São Paulo, sexta-feira, 31 de janeiro de 1997
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Paçoca afrodisíaca, poesia ou prosa mineira?

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

É bom receber carta de leitor. Ótimo, até, principalmente se o leitor é um belo poeta, como o Donizete Galvão.
E que ainda por cima manda paçoca de amendoim assinada pelo sogro, no Natal. A paçoca veio com indicação de ser coisa de sustança e até afrodisíaca. Ninguém acreditou, é claro, mas tenho notado que o nível da paçoca vem baixando na calada da noite. Estou à caça do ladrão.
Nada ético, nada ético, vou editar para você umas cartas do Donizete. Entende de comida que só ele. Leva jeito para cozinheiro ou para comilão.
Infância mineira
"As iguarias eram poucas. Milho verde colhido à tardinha no milharal. Cambuquira refogadinha. Frango caipira quando tínhamos visita. Uma vez, depois de matar o frango para o almoço, chegou visita no fim da tarde. Minha mãe pediu que eu fosse pegar outro, e eu, espantado com aquela extravagância, outro frango? A visita, constrangida, pedia que a gente não se desse ao trabalho.
"Havia também a canjiquinha com costelinha de porco. Leitão, só na época de Natal ou em algum banquete. A orgia era quando matávamos porco. Chouriço feito na horinha. Linguiça. Torresmo. E a melhor parte ia para as latas de gordura para ser esquentada a cada refeição. Mineiro é fanático por carne de porco. Morando em São Paulo perdi um pouco o gosto. Acho forte. Minha sogra faz chouriço doce, que acho uma delícia."
Opinião
"Achei que você foi muito severa com a abóbora. Se você colher uma abobrinha bem verdinha, 'lumiando', como se diz, e fizer batidinha com a faca, fica muito bom. Sabe aquelas tardes em que acabou de chover e você corre entre os pés de milho ainda molhados e descobre uma abobrinha dessas? Fica muito bem com angu e feijão."
Avisos
"Havia sempre os avisos. Comeu comida quente não sai na chuva que estupora. Manga com leite não pode. Ovo com pepino também não. Por mais que a gente apontasse exemplos de pessoas que comiam tudo isso e estavam vivinhas. Não interessava. Eram venenos."
Sobre limas de bico
"Claro que me lembro de limas de bico. Visitava a fazenda de meus tios, os Mira, um verdadeiro cafundó, e me esbaldava com as limas. E com as mexericas que chamam de cariocas, aqui em São Paulo. A gente saía pelos pastos e comia tudo o que via pela frente: joá, milho de grilo, amora silvestre, coquinho, maria pretinha. Há até uma frutinha arroxeada que solta uma tinta dessa cor, da qual eu não sei o nome. Ninguém me tira da cabeça que ela deve ser prima caipira do mirtilo ou da blueberry."
Sonhando com Minas
"Como sou um sonhador, pensava em Minas conservando suas melhores tradições, desfazendo-se do ranço e adquirindo 'know-how' sofisticado. Virando uma Provence caipira. Ou como está acontecendo com a serra fluminense. Mas o que vejo são as pessoas querendo McDonald's, fast food árabe (ou 'sélvi-sélvi', como se diz em Maceió) e outros. Ninguém quer mais bolinho de polvilho frito no óleo porque espirra. Doce de casca de laranja com rapadura dá um trabalhão, e por aí vai."
Limites
"O empregado do sítio do meu sogro, que tem seis filhos, quando vai à cidade compra Danoninho para eles. Nada de mingau de fubá ou leite com farinha, como fomos criados.
"Essa onda de globalização tem dessas coisas. Hoje temos vinhos melhores, uns temperos diferentes etc. Por outra, perdemos uma simplicidade que era, convenhamos, mais chique.
"Meu cunhado diz que há três coisas que ele nunca vai ser encontrado comendo ou usando em suas receitas: chantilly, creme de leite e pão de forma. Não sei se você leu 'Pássaros da América', da Mary McCarthy. A personagem da mãe vivia experimentando receitas americanas. Só as tradicionais. Colocando uma data limite. Tudo o que houvesse sido inventado daí para frente não valia."
Pois é. O Donizete Galvão escreveu a coluna inteira por mim. O que será melhor? A paçoca do sogro, a poesia ou o dedo de prosa mineiro? Páreo duro.

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