São Paulo, quinta-feira, 2 de outubro de 1997 |
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Uma viagem do tango ao candomblé
ANTONIO RISÉRIO
Diante de um perfil desses, a pergunta só pode ser uma: mas quem era esse baiano? E a resposta: era um argentino. Um argentino nascido em 1911, em Lanus, subúrbio industrial de Buenos Aires. Um argentino chamado Hector Julio Páride Bernabó. Ou melhor, Carybé. Não é comum, mas a Bahia tem sido premiada com esse tipo de conversão antropológica. E podemos aproximar os casos de Carybé e do antropólogo Pierre Verger. Deixando a França sob o signo de Gauguin, Verger cruzou terras e mais terras, do Mali ao Peru, e assentou-se na Bahia, onde se iniciou no candomblé. Ele e Carybé experimentaram em profundidade o sempre estranho e denso fenômeno da conversão cultural. Como Verger, Carybé chegou à Bahia depois da leitura do "Jubiabá", de Jorge Amado. Veio conferir a realidade recriada pelo romancista baiano. Decepcionou-se, aliás, ao conhecer Jorge pessoalmente (esperava encontrar um mulato forte, gargalhante, e deu de cara com um sujeito franzino). Mas a cidade o enfeitiçou. Mais tarde, quando decidiu escolher um lugar para viver -e pintar-, o "andejo sul-americano" (como Patrícia Galvão, Pagu, o chamou) ficou em dúvida: Cuzco, no altiplano andino, ou a Bahia, local que, como dizia, parecia ter sido encomendado por artistas. Escolheu a Bahia -"alegre, cheia de sol e de luz". Para cá trouxe a mulher Nancy, também argentina, e aqui viu nascer e crescer os filhos, o artista plástico Ramiro e a bonita Solange, bióloga. Chegou trazendo uma carta de apresentação assinada por Rubem Braga, cujo destinatário era o mestre Anísio Teixeira, então no comando da política educacional do Estado. E Carybé foi então contratado para "desenhar a cidade". Anísio acertou em cheio. Carybé era, sobretudo, desenhista. Claro, tratava-se de um artista múltiplo, exercitando-se com tranquilidade em inúmeras técnicas -e até mesmo envolvendo-se com o cinema, como no caso dos 1.300 esboços de cenas que desenhou para "O Cangaceiro", de Lima Barreto. Seu muralismo, que vem de Picasso e Rivera, impressiona, seja pela beleza quase grave do Mural dos Orixás (Salvador), seja pela profusão de detalhes dos murais do aeroporto John Kennedy (Nova York). Mas na minha opinião, a sua técnica-rainha é o nanquim. Vejam o livro "As Sete Portas da Bahia", reunindo desenhos da década de 50. É um misto perfeito de economia e riqueza -o traço elegante, caligráfico, produzindo figuras nítidas, em composições preferencialmente planas. E como as suas personagens eram colhidas em meio à população negro-mestiça da Bahia, Carybé não deixava de realizar um projeto nascido do modernismo de 22 -mais precisamente, no âmbito do movimento antropofágico comandado por Oswald de Andrade. Sim: os antropófagos pensaram em realizar estudos sobre o andar do negro brasileiro, segundo nos conta Raul Bopp. Seriam estudos pioneiros de semiótica gestual. Mas há outro aspecto que gostaria de negritar. É a dimensão do fazer. Carybé foi um artífice. Ao meter a mão na massa (literalmente, em seus trabalhos com barro), Carybé era um peão que não brincava em serviço. Ele empunhava a goiva do escultor com a mesma disposição com que o vi, certa vez, carregar telhas para uma obra num terreiro de candomblé. Por fim, digo que não foi por acaso que assinalei a insignificância da paisagem em seus desenhos. Esse desenhista elegante, ou esse pandeirista, que mereceu de Jorge Amado a definição de "baiano exemplar", teve a sua atenção totalmente concentrada nas pessoas. "Adoro gente", costumava repetir. E era verdade. Foi por aí que ele conseguiu recriar em nanquim a vida da gente baiana. E com tal precisão que Rubem Braga não resistiu, dizendo: "Carybé não se inspira na Bahia, parece que a Bahia é que se inspira em Carybé". Texto Anterior: REPERCUSSÃO Próximo Texto: Pitta prevê R$ 19,8 mi para publicidade Índice |
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