São Paulo, quinta-feira, 2 de outubro de 1997
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"ELA" CHEGOU

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

A peça foi escrita em 1955, mais de duas décadas antes de o cardeal polonês Karol Wojtyla ser eleito e tornar-se o papa João Paulo 2º, em 1978 -e desde então levar a sua imagem ao mundo.
Mas existe algo de premonitório no texto de Jean Genet (1910-86), escritor e dramaturgo francês, também autor de "As Criadas" (ou "As Boas", na versão recente) e "O Balcão", ambas já montadas no Brasil.
"Ela", ou "Elle", pelo original, fala de um papa da imagem, de um papa como este, que passou por 105 países nos últimos 19 anos, no esforço da "nova evangelização". Evangelização que não se vexa de recorrer à imagem, sobretudo àquela da televisão.
João Paulo 2º é um papa que, ator e autor teatral ele próprio, até os 24 anos, quando ordenou-se padre, tem grande consciência da força da representação na mídia. Da representação e de seu próprio carisma, quando multiplicado na televisão ou pelos cultos ao vivo, para multidões que alcançam mais de um milhão de pessoas.
"Ela", título de duplo sentido que reporta tanto à Sua Santidade como, no que é próprio do teatro de Genet, à condição feminina, não trata da imagem intensificada pela televisão, mas faz sua alegoria na fotografia.
Sessão de fotografia
Durante a peça, o papa, que não é identificado, enfrenta uma sessão de fotos que irão definir e levar sua imagem a 15 milhões de fiéis, que é a tiragem das cópias. Antes da imagem, ele não é nada. Diz ao fotógrafo:
"Eu sou aquilo a que o senhor vai dar forma de papa. Disponha. Abaixa meus braços, levanta meu pé, estira minha bochecha direita, inclina meu busto, puxa a minha língua, mas faça de mim um papa para 15 milhões."
Mais à frente, depois de afirmar que não vai fazer pose alguma e que a postura verdadeira, em que se aproxima mais de Deus, é a de cócoras, quando defeca:
"Mas não saberíamos oferendar ao mundo a imagem de um papa em cima de um penico. O mundo não ia acreditar. Não teria diante de si a imagem do papa. Mas então o papa seria o quê? Uma série de poses? Então, meu jovem amigo, dê a este manequim as atitudes pontificais."
Montagem em Paris
Com os seus questionamentos, "Ela" é uma peça que começa a seguir no encalço de João Paulo 2º, por onde ele vai, pelo mundo. Quando esteve em Paris, há dois meses, "Elle" ganhou uma nova montagem no Vieux-Colombier, o histórico teatro francês, que já abrigou Louis Jouvet e Antonin Artaud (1896-1949).
Mas a montagem era contida, tradicionalista, até respeitosa do papa, sobretudo se comparada ao que promete agora José Celso Martinez Corrêa, 60, diretor do Oficina e que pela primeira vez também protagoniza o espetáculo. É Zé Celso quem faz o papa em "Ela", que estréia hoje, às 21h, no teatro Oficina, em São Paulo, com entrada gratuita.
Ele gostaria de sublinhar ainda mais as suas diferenças com Sua Santidade e com a Igreja Católica. Pouco antes da estréia, não havia decidido ainda se acrescentava a "Ela" a carta escrita por Antonin Artaud, supostamente ao papa, em que o ator, autor e teórico do teatro acumula impropérios.
Dois atores
Ao mesmo tempo, Zé Celso, agora também ator, está fascinado pelo ator João Paulo 2º. Conta com um sorriso que foram dois atores, um deles papa e o outro presidente dos EUA -Ronald Reagan-, que derrubaram o comunismo. Nada contra o comunismo, diz, mas muito em favor da força, do poder dos dois atores.
Vai desfiando elogios à visão que o atual papa, quando ator, tinha do teatro. Um teatro como arte de resistência da cultura polonesa e como meio para ouvir a palavra sagrada, a Palavra Viva, expressão que era usada pelo grupo teatral, chamado Teatro Rapsódico, de Karol Wojtyla.
Foi um ator que, no palco, dava importância a cada respiração, a cada fala, diz Zé Celso. Um ator que, já católico, interpretou com fervor místico o personagem que manda matar São Estanislau, o santo polonês, mártir nacional. E que, eleito papa, viajou à Polônia e celebrou cerimônia usando vestes do próprio santo.
"Não é blasfemo"
O diretor-ator diz que, fazendo "Ela", ganhou distanciamento de si mesmo, para contracenar com o mecanismo do teatro brasileiro, do próprio teatro Oficina. "A grande coisa do Genet é ver isso, o 'cativo apaixonado', no outro", diz Zé Celso.
"Não tem nenhuma situação que ele condena. Tanto que o texto não é blasfemo. Ele escreve sobre ele, Genet. Genet é o papa. Todos somos papas. A chave da peça é que não tem um papa. Os cinco atores, na montagem, são papas. O papa é uma figura para você mirar e ver a si mesmo."
Genet, no entender do diretor (que só veio compreender Genet, diz, na última década), não carrega preconceito nem mesmo contra a imagem, tão questionada na peça. O que o autor aponta seria o terror da imagem fixa, da imagem única, que suprime o original.
Grande Otelo
Não é de agora que Zé Celso quer montar "Ela". O desejo vem desde o fim dos anos 80, quando chegou a preparar uma produção, com Grande Otelo como papa -que acabou impedida, segundo o diretor, por pressão de católicos da Tijuca, no Rio, onde fariam as apresentações.
O cenário e os figurinos são de Gringo Cardia, sendo parte das vestimentas escolhidas no Museu do Samba, de fantasias que Clóvis Bornay teria feito para o Carnaval. As fotos de divulgação da peça são de Bob Wolfenson, que chegou até a tomar parte de leitura dramática, como o Fotógrafo.
No elenco, o Fotógrafo é feito por Fransérgio Araújo, o Mestre de Cerimônias (ou Suíço) por Marcelo Drummond e o Cardeal por Vadim Nikitin, os três atores das montagens mais recentes do grupo Oficina, como "Bacantes" e "Ham-let".
Além de Artaud, diversas outras interferências estão sendo feitas por Zé Celso na peça de Jean Genet que traduziu. Uma delas traz os versos do poeta Roberto Piva. A outra é uma canção de uma peça escrita pelo próprio diretor nos anos 50, chamada "Vento Forte para Papagaio Subir".

Peça: Ela
Autor: Jean Genet
Diretor: José Celso Martinez Corrêa
Quando: qui a sáb, às 21h; dom, às 19h
Onde: teatro Oficina (r. Jaceguai, 520, Bela Vista, tel. 011/606-2818)
Quanto: R$ 20 (a partir de hoje)

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