São Paulo, sexta-feira, 3 de outubro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Cientistas pela tolerância e solidariedade

FLÁVIO FAVA DE MORAES, ADOLPHO JOSÉ MELFI E SERGUEI LAZAREV

Fazer ciência, dedicar a vida à busca do conhecimento, à criação e à descoberta científica, é uma escolha séria, complexa e difícil. À dedicação nem sempre corresponde o reconhecimento; à árdua labuta cotidiana nem sempre correspondem os resultados almejados. Sucessos e fracassos muitas vezes ficam restritos, se não às paredes dos laboratórios, aos limites da comunidade científica à qual pertencemos.
Se tantos são os percalços e tão incertas as conquistas, por que insistimos em uma profissão que tem muito de missão, embora não possamos nos dar ao luxo de encarnar o papel de missionários diante das necessidades concretas da vida cotidiana?
Todo jovem que escolhe o caminho da pesquisa científica tem frequentemente dentro de si um mundo de sonhos e ideais, sejam aqueles que lhe falam de suas possibilidades criativas, sejam aqueles de colaborar para a construção de um mundo melhor.
Nesse mundo que perde a cada dia o encantamento do sonho e das perspectivas de ampliação da vida e da consciência, escolher a ciência parece, raras vezes, uma forma sutil de auto-aniquilamento; na maioria delas, a chance de realização suprema. Lidar com a dificuldade de verbas, o desgaste no desvio de tarefas, a desvalorização do trabalho, os estereótipos que sufocam, uma carreira socialmente incompreendida, os conflitos internos da própria comunidade acadêmica -tudo é um desafio.
Campo da autonomia e da criatividade no pensar, do amor à liberdade, da prática do diálogo e do respeito, o mundo científico tem a vocação de viver e o dever de construir a democracia em todo o planeta. Tem também a vocação de fomentar esforços pela melhoria da qualidade de vida, pelo pleno respeito a todos os direitos fundamentais dos seres humanos, sem fronteiras.
Há vivências internas ao mundo científico da maior relevância para o fortalecimento de todos. No mero reconhecimento das dificuldades que, muitas vezes, cercam o intercâmbio entre áreas está um dos desafios mais notáveis no entrelaçamento de esforços.
Por outro lado, a vivência do reconhecimento aos que vieram antes -o que nas tradições étnicas e religiosas coloca-se como a admiração à ancestralidade e na vida científica, como o respeito aos mestres- é outro ponto delicado. É simples esquecer uma dívida contraída, que jamais se pagará a não ser pelo respeito ao que nos guiou, bem como pela oferta da mesma generosidade desprendida a outros, nutrindo ciclos de evolução da humanidade.
Ao realizar, no mês que vem, o seminário internacional "Ciência, Cientistas e a Tolerância", com a Unesco, a USP lançará mais algumas sementes que possam vivificar e se propagar.
Trata-se de criar um espaço intencional para discussões multidisciplinares, integrando cientistas de diferentes áreas, analisando como e por que as ciências atuam diante dos desafios de uma humanidade que precisa rever suas práticas de tolerância, respeito, solidariedade. Isso deve se dar não só por palavras, mas por gestos e ações que reduzam o sofrimento e a miséria.
É a necessidade de integrar gerações de cientistas, trazendo aqueles cuja experiência há de iluminar os pontos mais obscuros e trazer tranquilidade, pela sabedoria da urgência da ação.
Enquanto isso, o ímpeto dos mais jovens, a sede de realizar e vencer, há de ser a força que se instala e avança. Para os que já estão em plena maturidade pessoal, profissional e de produção científica, é a chance de partilhar com os iniciantes caminhos que já trilharam enquanto divisam, com os mais antigos, veredas que ainda percorrerão.
A integração geracional, aliada à das áreas científicas, ao voltar-se para pensar o papel da ciência e dos cientistas no destino humano, poderá colaborar para que se revigorem a chama do espírito de responsabilidade coletiva e a chance da transformação.
Além disso, ao entrelaçar esforços desde a preparação do evento, a USP e a Unesco convidam, desde já, todos aqueles que tenham desejo de juntar-se a esse esforço, participando de diferentes maneiras (toleran@fma.if.usp.br).
Será a forma de tentarmos ainda uma vez encontrar caminhos que, nascidos da democracia e da busca do saber, para elas retornem, acrescidos de novas alternativas e realizações.

Flávio Fava de Moraes, 59, é reitor da Universidade de São Paulo (USP), professor-titular do Instituto de Ciências Biomédicas e vice-presidente da Associação Internacional de Universidades. E-mail: dtsibi@org.usp.br
Adolpho José Melfi, 60, é professor-titular do Instituto Astronômico e Geofísico e pró-reitor de Pós-Graduação da USP (Universidade de São Paulo).
Serguei Lazarev, 43, é chefe da Unidade de Tolerância e da Paz da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura).

Texto Anterior: João de Deus
Próximo Texto: Apoio; Masp; Ralo; Idéias parciais; Indignação; Casa da sogra; Comparação equivocada; Como fica?; Sem comparação; Uso indevido; Turismo nota dez; "El Niño"; Dívida com a juventude; Silêncio
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.