São Paulo, domingo, 5 de outubro de 1997
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Visionário, João Paulo 2º será visto como gigante do século 20

CARL BERNSTEIN
ESPECIAL PARA A FOLHA

O evangelho deste papa reza que a vontade do indivíduo deve ser subordinada à da comunidade

À medida em que se aproxima o vigésimo ano de seu pontificado e a virada do milênio, o mundo está começando a reconhecer que o papa João Paulo 2º é um dos gigantes da história do século 20, um visionário que vem exercendo imenso impacto sobre sua época e sua igreja.
Quando foi eleito papa pelo colégio dos cardeais, em 16 de outubro de 1978, o pontificado e o Vaticano já haviam deixado, havia muito tempo, de ser uma potência importante no mundo, além dos limites de Roma.
A Guerra Fria parecia ser imutável, o papel do catolicismo na luta contra o comunismo, irrelevante. "Quantas divisões tem o papa?", Stálin perguntara em tom de zombaria, num gracejo famoso.
A igreja parecia estar sem rumo, tão insegura do Evangelho que pregava quanto do lugar que ocupava no mundo das nações. Nas Américas, a nova Teologia da Libertação, supostamente consistente ao mesmo tempo com os princípios marxistas e cristãos, deitava raízes.
"Não tenham medo!", exclamou o novo papa aos fiéis reunidos na praça de São Pedro. "Abram as portas para Cristo -escancarem as portas! Abram a seu poder de salvação os confins do Estado, abram os sistemas econômicos e políticos, os vastos impérios da cultura, da civilização e do desenvolvimento... Não tenham medo!"
Alguns dias depois ele viajou a Assis. "Não se esqueça da igreja do silêncio!", gritou alguém na multidão, referindo-se à igreja reprimida por trás da Cortina de Ferro. Sem hesitar um instante, João Paulo 2º respondeu: "Ela não é mais a igreja do silêncio, porque fala com minha voz".
Assim foi traçada a agenda, nas primeiras horas do novo pontificado. "O novo papa é um homem que ousa confrontar problemas e pessoas. Vamos acabar sentindo o cheiro da fumaça de bombas", disse o cardeal secretário de Estado, o francês Jean Villot, um diplomata cauteloso. Foi um dos primeiros a partir. E, nos 19 anos que se passaram, temos sentido o cheiro de uma bomba atrás da outra.
No cerne deste pontificado -e também da vida e da filosofia deste papa- figuram a Polônia e sua vivência do nazismo e do comunismo, os dois sistemas totalitários sob os quais Karol Wojtyla passou praticamente toda sua vida de adulto antes de se tornar papa.
A Polônia é a pedra de toque espiritual e geopolítica do papa. Sua religiosidade católica foi moldada pela igreja polonesa -uma força religiosa de poder único no mundo comunista, um país 93% católico, desde a 2ª Guerra Mundial- e pela ortodoxia e desconfiança na democracia que, especialmente diante do papel vitorioso desempenhado pelo papa na queda do comunismo, vêm provocando o desalento e distanciamento dos católicos no Ocidente.
Profundamente polonês
No entanto, foi o próprio fato de ser tão profundamente polonês que fez dele uma força em prol de transformações profundas no mundo, à medida em que a Polônia se transformava no campo de batalha dos desdobramentos da Guerra Fria, e Karol Wojtyla, num de seus maiores participantes.
Sua visão do mundo pós-comunista -e a antipatia que nutre pelo capitalismo sem freios- também tem sido moldada pela experiência da Polônia desde a queda do comunismo, à medida em que João Paulo 2º vem observando, desiludido, sua terra natal abraçar valores seculares.
O pontificado de João Paulo 2º não é o que muitos integrantes do colégio de cardeais esperavam que fosse. Dois dos cardeais cruciais para sua eleição foram o brasileiro Aloísio Lorscheider e o austríaco Franz Konig. Ambos consideravam Karol Wojtyla um homem de mente aberta, comprometido com a democratização da igreja e com as novas correntes teológicas que a perpassavam, aberto à distensão e à "ostpolitik" (política do Leste Europeu), em troca de concessões que seriam feitas à igreja pelos governos comunistas atrás da Cortina de Ferro.
Mas a flexibilidade não seria uma das marcas registradas deste pontificado. Na verdade, o papa Wojtyla tem um conjunto de idéias fixas e vem se atendo a elas com tenacidade. Essa constância com que defende seus princípios -apesar de muitas vezes discordarem dos de outros líderes mundiais, movimentos seculares e correntes no interior da própria igreja- tem marcado tanto a vitória de seu pontificado quanto, na visão de muitos a quem a teologia rígida de seu pontificado distanciou dela, seu fracasso.
A primeira década de seu pontificado foi centrada na luta heróica contra o comunismo em sua terra natal, onde ele atuou tanto como fonte de inspiração quanto como protetor do movimento trabalhista Solidariedade, a primeira aliança de trabalhadores anticomunista num Estado operário.
Ele liderou a revolução do Solidariedade, inspirou-a e protegeu-a. Por meio das visitas papais que fez à Polônia, dos sermões que fez a seu povo, das reuniões instransigentes que manteve com o então presidente Jaruzelski, de sua disposição de embarcar no que a administração Reagen via como sua "aliança secreta" com o pontificado para defender objetivos conjuntos na Polônia e em outros países, João Paulo 2º deu mostras de uma espécie de liderança global que ainda não havia sido vista na segunda metade do século 20: grande habilidade geopolítica combinada com imenso poder espiritual.
Esses dois atributos continuam sendo o fundamento da grandeza de João Paulo 2º. E, com a possível exceção de Nelson Mandela, nenhum outro líder de nossa época se tornou porta-voz universal dos valores humanos comuns, da paz, da dignidade de toda a humanidade, em prol dos pobres e dos excluídos.
O evangelho de direitos humanos do papa -a síntese de suas idéias teológicas e filosóficas- vem movendo praticamente tudo o que o papa tem feito: na Polônia, nas Américas, na África, em seus pontos de vista sobre o sexo e a família.
Em seu evangelho de direitos humanos não há lugar para conciliação com o comunismo, o totalitarismo, o ateísmo imposto pelo Estado. "Excluir Cristo de qualquer latitude ou longitude é um pecado contra o homem" -não contra Deus-, pregou na primeira visita que fez à Polônia na condição de papa.
No entanto, sua filosofia de direitos humanos muitas vezes bate de frente também com os princípios democráticos e capitalistas: o evangelho deste papa reza que a vontade do indivíduo muitas vezes deve ser subordinada ao bem da comunidade; que os lucros não devem ser extraídos à custa do trabalhador; que o direito supremo, acima de todos os outros, é o direito à própria vida, direito esse que se estende à formação do ser humano, no momento em que o óvulo e o esperma se encontram.
Quando deram seus votos e exortaram seus irmãos a votar em Karol Wojtyla, os cardeais Lorscheider e Konig acreditaram que estavam votando pelo aumento da democracia na igreja, por um pontificado que iria fortalecer o papel dos bispos, como grupo, na participação do governo da igreja, ao lado do papa.
Sua previsão não poderia ter sido mais incorreta.
Meios misteriosos
Wojtyla acredita que um papa é escolhido por meios misteriosos para ser o vigário de Cristo na Terra, por meio da intervenção do Espírito Santo, atuando por meio dos cardeais eleitores.
Sua visão da igreja e de seus dogmas é antiga e perene, uma visão em que o papel da mulher é restrito; em que o sexo só pode ser compartilhado por homens e mulheres reunidos pelo casamento; em que o pecado deve se confrontar com a verdade do Evangelho; em que sacerdotes e teólogos não devem fazer desse evangelho uma interpretação diferente daquela do papa; em que os bispos existem para auxiliar o papa, mas não para compartilhar com ele o poder real.
Nestes 19 anos em que vem ocupando o trono de Pedro, João Paulo 2º critica a era moderna e seus valores. Ele indicou mais de dois terços do total de bispos existentes no mundo, boa parte dos quais compartilham sua filosofia.
No entanto, muitos desses mesmos bispos buscam adaptar-se a seus rebanhos e à mentalidade moderna, ao mesmo tempo em que Karol Wojtyla a rejeita. Vem daí o fato de que o próximo pontificado, acreditam muitos cardeais, vai procurar unir a igreja de maneiras que João Paulo 2º vem negando: o movimento pelo sacerdócio feminino, por não considerar pecaminosa uma liberdade sexual mais ampla, ou, pelo menos, para que Roma não chame atenção a ela, e pelo fortalecimento do papel do sínodo dos bispos na direção da igreja.
A cidade eterna vê o papa polonês reinando na catedral de São Pedro há duas décadas, um dos mais longos pontificados da história, mantendo contatos com crianças em paróquias por toda a cidade, cambaleando para dentro do coliseu sob o peso da cruz de madeira que ele carrega nas procissões da Sexta-feira Santa.
Outros papas já o fizeram antes, mas nenhum deles viajou uma fração da distância percorrida por este. João Paulo 2º vem percorrendo o mundo sistematicamente, discursando pessoalmente para multidões -literalmente bilhões- de católicos e de não-católicos.
Bilhões de pessoas já o viram na televisão. No dia de São Pedro e São Paulo, em 1982, ele disse aos cardeais reunidos no Vaticano que suas viagens eram um exercício do "carisma de Pedro em escala universal". "Se eu permanecesse no Vaticano, como a cúria gostaria que fizesse", disse ele a um padre polonês, "eu ficaria sentado em Roma escrevendo encíclicas, que seriam lidas por apenas um punhado de pessoas. Se viajo e vou até as pessoas, me encontro com muitas delas, tanto pessoas simples quanto políticos. E elas me ouvem. Senão, jamais viriam até mim."
E elas vieram.
Em muitas ocasiões ele visitou partes do mundo onde os seres humanos vivem em sofrimento terrível -miseráveis, oprimidos, doentes e esfomeados. Quer estivesse no Primeiro ou no Terceiro Mundo, ele pregava que "o reino de Deus é também o reino da justiça, e a atividade missionária no mundo precisa andar de mãos dadas com a introdução de condições (...) que permitam uma vida digna às pessoas".
Na Nigéria, declarou: "A cínica exploração dos pobres e ignorantes é um crime grave contra a obra de Deus". Na Colômbia, advertiu "aqueles que vivem no excesso e na abundância luxuosa para que se dispam de sua cegueira espiritual". No Brasil, defendeu o direito de sindicalização dos trabalhadores.
A uma platéia canadense, disse: "O sul pobre vai julgar o norte rico à luz da palavra de Cristo. Os povos pobres (...) vão julgar os países que arrebataram sua propriedade, afirmando um monopólio imperialista sobre seus bens e uma primazia política, a expensas de outros povos".
João Paulo 2º vem buscando promover a paz entre as religiões do mundo, tendo lançado o reconhecimento oficial do Estado de Israel pelo Vaticano e conclamado a Igreja Católica e refletir sobre seus próprios pecados -embora nem sempre ao ponto que outros possam desejar.
Como a população brasileira pôde ver, o papa ainda não concluiu seu trabalho. E, não obstante as controvérsias, os conflitos com os fiéis, a rigidez teológica, João Paulo 2º será lembrado -como Gandhi, como Martin Luther King, como Roosevelt e Churchill- como um dos gigantes do século, um grande líder moral e político.

Tradução de Clara Allain

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