São Paulo, domingo, 5 de outubro de 1997
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Peça de teatro escrita pelo papa retrata um casamento em crise

HUMBERTO SACCOMANDI
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Em uma peça publicada em 1960, o polonês Karol Wojtyla retrata um casamento em crise, no qual marido e mulher mal se suportam.
Wojtyla é o papa João Paulo 2º, que está no Brasil em cruzada pela defesa da família. Antes de ascender na hierarquia da Igreja Católica, escreveu e atuou em teatro, na Polônia.
A peça, traduzida em italiano como "La Bottega dell'Orefice" (A Loja do Ourives), apresenta uma situação delicada para a igreja: um casal atormentado, mas para o qual o divórcio não é uma opção.
A peça, escrita por Wojtyla em torno de 1956, quando o atual papa era professor na Universidade Católica de Lublin, foi adaptada para a TV em 87, pela RAI. O texto, em parte versificado, trata de três casais.
O primeiro, Teresa e André, está apaixonado e perto de casar. Relembra a trajetória, com angústias e incertezas, até o altar.
O segundo, Ana e Estevão, está em crise. Praticamente não se fala mais. Ana tenta vender sua aliança e se oferecer a outros homens, mas é contida por misteriosos personagens (um deles é o ourives, que aparece nas três partes).
O terceiro é Cristóvão (filho do primeiro casal) e Mônica (filha do segundo), que estão para se casar.
Nesse ponto, fica-se sabendo que André morreu na guerra quando o filho tinha 2 anos (a mãe de Wojtyla morreu quando ele tinha 8). E que Mônica cresceu atormentada pela vida instável dos pais.
A peça não tem um caráter de catequese, de ensinamento doutrinário, mas traz várias passagens que, apesar de passados 40 anos, ilustram pontos da doutrina católica aos quais o papa é muito apegado. Leia abaixo alguns trechos de "La Bottega dell'Orefice" (editora Libreria Editrice Vaticano, 12ª edição, 1993).
*
ANTIDIVÓRCIO
Teresa: "Estamos contornando a praça quando André se virou e me disse:
- Quer ser a companheira da minha vida?
Disse exatamente assim. Não perguntou quer ser minha mulher, mas quer ser a companheira da minha vida.
Então o que ele pretendia tinha sido bem meditado.
Disse isso com olhar distante, como se tivesse medo de ler nos meus olhos e, ao mesmo tempo, como se quisesse insinuar que na nossa frente não havia mais caminho, a rua acabara. Havia, ou pelo menos deveria haver, se eu tivesse respondido sim.
Respondi:
- Sim.
Mas não imediatamente, só depois de alguns minutos..."

(O trecho evidencia bem a aversão do papa ao divórcio. O compromisso do matrimônio é para toda a vida, segundo Wojtyla.)

CASAMENTO
André: "Evidentemente Teresa tinha alguma coisa que concordava com a minha personalidade. Eu pensava muito, então, no meu álter ego.
Sim, Teresa estava a um mundo inteiro de distância, do mesmo modo que todo outro homem, toda outra mulher. Mas alguma coisa me permitia pensar que eu poderia construir uma ponte."
(...)
Decidi assim procurar uma mulher que fosse capaz de ser o meu álter ego, para que a ponte construída entre nós não se tornasse uma passarela vacilante..."

(João Paulo 2º voltou à metáfora da ponte em várias ocasiões. Uma vez construída a inderrubável ponte, as duas margens nunca mais serão as mesmas e nunca mais estarão isoladas.)

NAMORADAS
André: "Já encontrei algumas garotas que despertaram a minha imaginação e ocuparam os meus pensamentos..."
(...)
Então, quando nos encontramos de repente dos dois lados do grande espelho -aqui vivos, reais, lá refletidos-, eu, não sei por quê, talvez para completar o quadro, ou, mais provável, movido simplesmente pela necessidade do coração, perguntei: 'No que você está pensando, Teresa?' Disse isso quase sussurrando, porque assim normalmente falam os namorados."

(João Paulo 2º foi talvez o único papa moderno a admitir ter tido namoradas na juventude. Nessa passagem, o personagem André parece falar por Wojtyla.)

MISTÉRIO DO MATRIMÔNIO
André: "Mas não entramos logo. Parou-nos um pensamento, inato -sabíamos bem-, no mesmo momento em mim e nela.
Os anéis que estavam na vitrine nos dizem algo com estranha firmeza. Por enquanto, são objetos de metal precioso, mas o serão só até quando eu colocar um no dedo de Teresa, e ela colocar o outro no meu. A partir desse momento, serão eles a indicar o nosso destino. Farão-nos sempre relembrar o passado, como se fosse uma lição a recordar, escancararão-nos a cada dia o nosso futuro, enlaçando-o ao passado. E juntos, a cada momento, servirão a unir-nos invisivelmente, como os anéis extremos de uma corrente."
(...)
Coro (no casamento): "Os homens novos -Teresa e André- até agora são dois, não ainda um, mas já são um, se bem sejam dois.
(...)
O amor, o amor vibra nas têmporas, o amor na mente se torna pensamento e vontade: vontade de André de ser Teresa, vontade de Teresa de ser André."

(No mistério do casamento, segundo o catolicismo, os casais deixam de ser dois, para se tornar um. Isso é frequentemente ressaltado pelo papa, como justificativa para rejeição do divórcio. Não se pode dividir o que é uma só coisa.)

A CRISE MATRIMONIAL
Ana: "Não me ama mais -tive de reconhecer-, se não percebe mais a minha tristeza. Eu não conseguia ter paz e não sabia como impedir a fratura: (no começo as suas bordas pararam, mas de um momento para o outro poderiam separar-se ainda mais -em todo caso, eu sentia que já não mais se reaproximariam).
Como se Estevão não existisse mais para mim. Ou talvez nem eu estivesse mais dentro dele? Ou talvez eu tinha só uma sensação de existir sozinha em mim mesma?
Como me sentia estranha para mim mesma! Quase como desacostumada às paredes do meu íntimo -estava tão cheia de Estevão que não parecia vazio.
Mas não é talvez uma coisa terrível condenar assim as paredes do teu íntimo a alojar um único habitante, que poderá desabrigar você e, de qualquer modo, mandar-lhe embora daquele lugar?
(...)
"O ourives olhou o anel, o pesou bastante na palma e me olhou nos olhos. Depois decifrou a data escrita dentro do anel. Olhou-me novamente nos olhos, e o colocou na balança... Depois disse: 'Esse anel não tem peso, o ponteiro está sempre no zero, e não posso obter nem mesmo um miligrama de ouro. Seu marido deve ainda estar vivo. Nesse caso, nenhum dos dois anéis tem peso sozinho -pesam só os dois juntos. A minha balança de ourives tem essa particularidade de não pesar o metal em si, mas todo o ser humano e o seu destino'.
Peguei com vergonha o anel e, sem uma palavra, fugi da loja. Acho que ele me seguiu com o olhar.
(...)
Eu era frágil, mas cheia de paixão -o amor não é talvez um fato dos sentidos e de um certa atmosfera? Esses elementos se unem e fazem, sim, que dois seres vibrem no círculo dos sentimentos -eis toda a verdade.
Não toda -sustentava Adão. Segundo ele, o amor é uma síntese de duas existências que convergem a um certo ponto e de duas se tornam uma."

A GUERRA
Teresa: "Não estava ainda no mundo Cristóvão, que foi concebido em mim, e o futuro destino de André, a história da nossa união, tudo isso, então desconhecido, já se tornava carne.
Quando Cris completou dois anos, André partiu para o front. Levantou a criança e a acariciou bastante antes de desaparecer através da porta.
Foi a última vez que o vi, e o menino não conheceu o pai."

(Wojtyla tinha 19 anos quando a Alemanha nazista invadiu a Polônia, em setembro de 1939, dando início à Segunda Guerra. Ele estudou e atuou em teatro clandestinamente.)

Cristóvão: "Devemos aceitar que o amor se entrelace com o destino. Se o destino não despedaçar o amor, será uma vitória do homem. Mas nada mais que isso, nada que vá além. Aqui estão os limites do homem."
(...)
Mônica: "Temos de seguir adiante juntos, Cristóvão, juntos, mesmo que eu me torne estranha para você, como minha mãe para meu pai.
Eu tinha medo exatamente disso. Ainda hoje temo o amor, temo esse desafio do homem."

(Os jovens noivos comentam o malsucedido casamento dos pais de Mônica, reiterando que, se isso se repetir, mesmo assim eles têm de continuar juntos.)

O PAPEL DOS PAIS
Teresa: "Naquela noite eu tive de entender, André, como todos nós pesamos sobre o destino deles. Eis a herança de Mônica: a fratura daquele amor ficou impressa tão profundamente nela que isso tem origem ali. Cristóvão procura curá-la.
Nele sobreviveu o teu afeto por mim, mas também a tua ausência -o medo de ter de amar o ausente. Mas isso não é culpa nossa."

(Teresa fala com o marido morto. Resume o que leva João Paulo 2º a dar tanta importância a esse encontro com as famílias, do qual veio participar no Rio.)

Teresa: "Comecei a procurar a culpa em mim também. E tinha. Parei de cortar as conversas, de silenciar para humilhá-lo. Não sei se ele mudou, mas se tornou menos intrometido. Também para ele, acho, a minha presença se tornou mais suportável.
(...)
Vivemos um para o outro. Não creio. Mais para as crianças. Mônica é a mais difícil. Nela nós destruímos mais. Agora ela se vai. Acho que ainda é muito cedo -e levará consigo a convicção da culpa dos seus pais (mas nisso talvez erre)."

(Teresa se sacrifica pela família e se resigna a uma convivência apenas suportável com o marido. Na autocrítica quanto à filha, Wojtyla usa termos emocionalmente fortes, ressaltando a culpa, o que evita fazer como papa.)

Trechos traduzidos da versão em italiano

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