São Paulo, domingo, 5 de outubro de 1997
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Democratas e populistas

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

A entrevista do professor Mangabeira Unger à Folha, publicada no domingo, 28 de setembro, foi recebida com hostilidade pelos chamados formadores de opinião. Entre tantos rótulos, os mais camaradas que lhe pregaram foram os de "ingenuidade política" ou "voluntarismo populista".
Essas duas expressões revelam, aliás, tanto em sua pobreza verbal quanto em suas pretensões críticas, os limites impostos ao debate econômico e político no Brasil, constrangido pela mídia oficialista a mover-se entre o determinismo estrutural e o elegante ceticismo do pensamento pós-utópico.
No popular, esses sestros mentais podem ser sintetizados pela idéia da inevitabilidade das fórmulas que vêm sendo propostas e executadas pelo arranjo de forças sóciopolíticas que hoje governa o país.
Não por outra razão, diga-se, o presidente Fernando Henrique Cardoso agraciou o ex-comunista Roberto Freire com o "status" de crítico privilegiado da Coroa. No caso de Roberto, um político sempre digno e correto, o tal determinismo estrutural parece ter transposto o Muro de Berlim e saltado para a banda das reformas do Estado, entusiasticamente endossadas pelo reconhecimento progressismo do PFL.
Voltando ao professor Mangabeira, não é preciso concordar com todas as suas opiniões para reconhecer que ele botou o dedo em muitas feridas. A mais importante delas tem a ver com a especificidade da situação histórica brasileira: "Temos de fazer a crítica da imposição desse ideário" (pseudo social-democrata de inspiração européia) "numa economia relativamente atrasada e em um país muito dividido e muito desigual como é o Brasil. A desilusão com o dirigismo estatal não nos deve fazer esquecer que nenhum país de desenvolvimento tardio desenvolveu-se sem uma aliança entre o Estado e os produtores".
O que temos por aqui, diz Mangabeira Unger, "é o neoliberalismo seletivo, que evita a colisão com os grandes interesses da elite. Ele diz aos empresários em países como o Brasil: aceitem um pouco mais de concorrência estrangeira e em troca damos a oportunidade de fazer negócios do arco da velha com a privatização. O neoliberalismo seletivo degenera numa série de barganhas que permitem manter a essência dos grandes interesses econômicos, ao mesmo tempo em que aumenta a flexibilidade da economia. A consequência social disso é que uma grande parte do país fica esperando essa lenta incorporação social; essa parte ameaça vingar-se da exclusão econômica pelo voto plebiscitário, em eleições presidenciais".
É muito importante a reafirmação de três pontos de vista que, aliás, mal conseguem botar a cabeça fora d'água nesse mar de concordâncias suspeitas do moderno pensamento nativo.
Primeiro, se o único e inevitável caminho é este que vem sendo desbravado pelo ideário neoliberal envergonhado, estaremos então condenados ao agravamento do apartheid social e, portanto, à exacerbação das condições que dão curso e alento à atual guerra civil não declarada.
Segundo, é possível escapar desse destino, apresentado como inexorável, mediante a construção de um arranjo político permeável às aspirações e às angústias da grande massa de excluídos que hoje ou vaga aos milhares pelo país em busca de pão, terra e trabalho ou está depositada nas periferias das grandes cidades, sobrevivendo ou morrendo na miséria e na violência.
Terceiro, sem uma presença decisiva do Estado não é possível a formulação de uma estratégia de desenvolvimento. Mangabeira ironiza, a meu ver corretamente, a versão que valoriza a auto-organização da sociedade civil: "A sociedade faz, o Estado não. É um ideário que justifica esse amesquinhamento da política e o combate às idéias de alternativas institucionais".
O tucanato social-democrata e seus acólitos parecem reagir a esse diagnóstico, carregado -imaginam eles- de populismo implícito, com a mesma náusea -imagino eu- que afligia os senhores de escravos diante da presença da senzala.
A entrevista de Mangabeira tem o mérito de obrigar essa turma a olhar de novo para a realidade cujo nome não desejam pronunciar, ou pretendem eliminar, dando sumiço no que apresentam como sobrevivências indesejáveis do famigerado nacional-populismo ou nacional-desenvolvimentismo.
Desafortunadamente para os que se dedicam a esse labor profilático e modernizador, há indícios de que o enfraquecimento do populismo, ou seu almejado desaparecimento, depende da eliminação das condições de reprodução das relações de dominação econômica e política, tarefa que, nem de longe, a aliança que governa o país está em condições de empreender.

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