São Paulo, domingo, 5 de outubro de 1997
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Os estrangeiros e o sistema financeiro nacional

JAIRO SADDI

Há um estranho costume no Brasil de incluir nos dispositivos constitucionais normas marcadamente conjunturais. Na nossa Carta, datada de quase nove anos, há exemplos que têm nos custado caro.
Na tentativa de definir a realidade por meio de leis -como se isso fosse possível-, o constituinte optou por normas programáticas, de cunho pouco aplicável, mas carregadas de intenções planejadoras, que visavam proteger os interesses então vigentes. Assim, nosso constituinte quis "programar" o sistema financeiro nacional para que tivesse apenas participantes locais, impedindo o acesso de instituições financeiras estrangeiras ao mercado brasileiro.
Recentemente, o Banco Central fez questão de formalizar uma prática que já era do conhecimento de todos. Por um comunicado, passou a exigir que os interessados façam consultas a ele, autoridade monetária, e que estejam dispostos a reduzir o passivo de instituições financeiras que sofreram liquidação.
Portanto, o Banco Central está fixando um "quantum" monetário para o interesse do governo brasileiro: sem critério em lei, um banco estrangeiro é obrigado, se quiser atuar no território brasileiro, a comprar ativos podres de instituições liquidadas.
Essa forma de cobrar pedágios, jocosamente batizados de "mouras" em função de seu criador, Alkimar Moura, ex-diretor do Banco Central, já foi aplicada a 11 novas instituições estrangeiras. Foi noticiado que existem outras 20 interessadas.
A atividade bancária não pode ser considerada uma atividade comercial qualquer. Não é possível admitir que qualquer um possa abrir um banco, pela simples e boa razão de que a atividade está baseada no cumprimento de expectativas futuras -por um lado, a entrega de recursos do poupador, acrescidos dos juros; por outro, o recebimento dos mesmos recursos por terceiros. É por esse motivo que, em quase todos os países, existem regras definindo a entrada dos "players" dos mercados. E é assim que buscam a preservação da equidade e o equilíbrio do sistema.
No entanto, a própria Constituição consagrou o princípio segundo o qual, para os entes internos, a autoridade monetária iria conceder autorização sem ônus para o funcionamento das instituições, assegurando o acesso a todos os instrumentos de crédito. Estamos, assim, discriminando o capital estrangeiro, dispensando a ele um tratamento diferenciado. É hora de definir o que queremos das instituições estrangeiras e com elas.
Para tanto, há três hipóteses: ou se continua a entender que, sendo do interesse nacional, pedágios têm de ser cobrados das instituições estrangeiras (mesmo que seja para convertê-los, depois, em algo mais próximo à comunidade: a obrigação de investimento, a concessão de linhas especiais de crédito etc.) ou se limita a participação dos estrangeiros no mercado nacional. Finalmente, há sempre a opção de abrir o mercado, transformando a regra das disposições transitórias, agora "de facto", em letra morta.
A defesa da limitação de atuação dos estrangeiros, estandarte levantado pela Febraban, está baseada no fato de que, já havendo uma excessiva competição entre os brasileiros, no mínimo não seria saudável para o sistema deixar o fluxo dos capitais e dos meios de pagamento em mãos alienígenas. Além disso, alega Roberto Setubal, presidente da entidade, em uma situação de crise, os limites para o país seriam reduzidos, causando transtornos para a economia local.
A segunda hipótese baseia-se na idéia de que é do interesse nacional tentar fortalecer o nosso sistema financeiro, livrando-o assim de todas as impurezas, com alguém de fora ajudando a pagar a conta.
Finalmente, a última posição, segundo a qual é hora de abrirmos o mercado, baseia-se no princípio da livre concorrência e no darwinismo econômico: somente os melhores devem sobreviver. Inequivocamente, é o caminho a ser adotado no país, mesmo que determinados princípios das duas correntes mencionadas possam ter alguma razão de ser.
Se, pela resolução 2.099, o Banco Central estabeleceu os critérios mínimos para efeitos de capitalização em consonância com o acordo da Basiléia, do qual o Brasil é signatário, supõe-se que as instituições financeiras autorizadas estejam cumprindo todos os requisitos legais. E esses requisitos devem ser aperfeiçoados, a fim de assegurar ao mercado que a abertura é séria e que o Brasil deseja se transformar em estrela nos mercados financeiros mundiais.
É preciso respeitar um princípio consagrado no direito internacional -o da reciprocidade. O Brasil deve conceder, sem ônus, autorização para bancos estrangeiros atuarem aqui, dispensando a eles o mesmo tratamento que merecem os nossos bancos no exterior. Ou seja, se o Federal Reserve de Nova York exige extensa comprovação para autorizar um banco brasileiro a operar lá, façamos o mesmo com eles aqui. Mas sem limitar sua participação a 30% ou cobrar pedágio.
Faz-se necessário também acabar com as autorizações com base em cobranças de pedágio, ainda mais com a exigência de decreto presidencial para o seu funcionamento. Convenhamos, nosso caro presidente está muito ocupado com outras grandes questões nacionais além dessa.
O que as instituições financeiras podem trazer ao mercado brasileiro? Concorrência, tecnologia, desconcentração, especialização são algumas vantagens mais visíveis e que, certamente, irão contribuir para o nosso desenvolvimento. No entanto, somente se aperfeiçoarmos nossas regras e princípios, consagrando a estabilidade como seu norte, será possível usufruir de todo o potencial que eles podem nos dar.
Em uma época em que a globalização vem sendo tão proclamada em prosa e verso, seria uma ilusão achar que nossas fronteiras podem ser protegidas por lei. Não podem nem devem. Bancos estrangeiros devem receber autorização para atuar no Brasil desde que cumpram as mesmas regras estabelecidas para os bancos nacionais. Assim, estar-se-á possibilitando à sociedade maior liberdade de opção para seus negócios de intermediação financeira.

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