São Paulo, domingo, 5 de outubro de 1997
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EUA agem como vilões do mundo

RUPERT CORNWELL
DO "THE INDEPENDENT", EM WASHINGTON

Washington quer impor seus valores ao resto do mundo para satisfazer desejos de grupos de pressão internos
A superpotência americana, que se deleita em apontar vilões no cenário internacional, está se comportando exatamente como um deles. Como prova, consideremos quatro exemplos recentes.
Lobbies poderosos em Washington ainda podem impedir o país de assinar o planejado tratado mundial do clima que pretende reduzir as emissões de poluentes -e, se o fizerem, ele será esvaziado. No mês passado, a oposição dos EUA pode haver dado um destino semelhante a um acordo internacional de proibição às minas terrestres. Somando doses de hipocrisia a alegações de impotência diante da oposição no Congresso, o governo dos EUA se nega constantemente a pagar o que deve à ONU. Agora o país integra mais uma minoria (composta de um só país) que procura estender o alcance de suas leis nacionais para impedir os Estados soberanos da França, Rússia e Malásia de cumprirem um acordo de exploração de gás com o Irã.
Os EUA podem apresentar uma defesa mais ou menos plausível em cada um desses casos, tomados individualmente. Afinal, a Comissão Européia não agiu com "extraterritorialidade" pelo menos equivalente quando exigiu -e obteve- modificações na fusão entre as empresas de aviação Boeing e McDonnell-Douglas? No caso das minas terrestres, não seria justificável uma exceção no caso das minas que protegem a fronteira da Coréia do Sul com a Coréia do Norte, possivelmente a mais perigosa do mundo? Talvez os gases industriais não sejam responsáveis pelo aquecimento global. E poucos discordariam das queixas americanas em relação à burocracia e incompetência da ONU.
Mas quando todos esses casos são vistos em conjunto, o que fica é uma impressão avassaladora: a de que Washington está mandando dizer ao planeta Terra que vá plantar batatas. Em certo sentido, é claro, esse sentimento não é inteiramente novo. É mais do que sabido que as forças polarmente opostas que atuam por trás da política externa americana são o idealismo e o isolacionismo, ou seja, as convicções opostas de que os EUA devem ou consertar o mundo ou manter distância dele.
Ambas têm suas origens na doutrina da excepcionalidade dos EUA, ou seja, de que é um país único em suas origens e concebido por Deus para um objetivo moral, ou moralizador, especial.
Além disso, hoje em dia, o "excepcionalismo" abrange a economia e a vitória arrasadora, pelo menos sob a ótica dos EUA, do modelo americano de capitalismo pragmático de livre mercado.
Os representantes americanos se gabam de crescimento robusto, inflação baixa, alto índice de emprego, dinamismo inovador -é só dar um nome ao critério, os EUA ganham em todos. O dólar está forte e os tigres asiáticos estão perdendo os dentes. Excepcionalismo americano? Melhor seria dizer arrogância americana, nascida da fraqueza de seu sistema político interno, não de sua posição externa.
Hoje em dia não existe uma política externa americana coerente, e sim uma série de gestos abjetos feitos para atender aos interesses de diversos grupos diferentes. Não que se queira exigir do país um conceito estratégico dos assuntos mundiais, de alcance kissingeriano. O que se pede é o fim do hábito de atender aos interesses de todos os grupos e do reflexo manifesto pelo presidente Bill Clinton de querer agradar a sua platéia imediata.
Ele pode se justificar evocando os problemas de governar num sistema dividido, em que a Casa Branca, democrata, vive em desacordo inevitável com o Congresso republicano. Isso não o isenta de ter que demonstrar pelo menos um pouco de disposição para enfrentar os grupos de interesses, quer se trate do Pentágono (no caso das minas terrestres), das indústrias petrolífera e energética (nas emissões de poluentes), dos representantes da linha dura republicana (nos pagamentos à ONU) ou do lobby judaico e dos interessados em conseguir o voto judeu (na aplicação de leis contra o Irã e a Líbia).
O mais triste, porém, é que a certeza que os EUA têm de sua própria sabedoria e correção moral é contraproducente, seu poder, essencialmente destrutivo. Os EUA não podem moldar os acontecimentos segundo seus desejos, desafiando a gravidade geopolítica.
Algum dia, o resto do mundo com certeza vai se cansar de pagar as contas atrasadas dos EUA na ONU. No caso das sanções extraterritoriais contra os "Estados bandidos" (como se o Departamento de Estado fosse o único capaz de fazer tais julgamentos), a posição é ainda mais clara. Simplesmente não funcionam. E as empresas americanas acabam perdendo as exportações e os mercados que antes eram delas.
Clinton, sempre ágil, pode encontrar soluções. Mas as colas antigas que uniam os EUA a seus aliados estão se dissolvendo, para serem substituídas por novas rivalidades -em torno de empregos e, provavelmente, do euro, se a proposta moeda única européia vier a desafiar a primazia do dólar na arena monetária mundial. Os acontecimentos de hoje não dão base para grandes esperanças de que seja possível encontrar alguma solução.

Tradução de Clara Allain

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