São Paulo, domingo, 5 de outubro de 1997
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Salvem o Judiciário

ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO

O Poder Judiciário não pode sucumbir diante de circunstâncias hostis, ainda que criadas por forças poderosas. Sua derrocada atingirá em cheio a liberdade, a democracia e a República, que, sem ele, serão alcançadas no seu âmago. As vítimas serão o povo, a sociedade e a cidadania.
Há pouco, o Colégio de Presidentes dos Tribunais de Justiça, reunido em Macapá, denunciou à sociedade brasileira que "a concentração do poder já se vai fazendo ameaçadora à normalidade institucional e à soberania da lei".
Nessa linha de entendimento pronunciaram-se eminentes juristas, convocando os brasileiros para uma vigília cívica com o objetivo de inverter tendências denunciadas à nação, "para que exista uma voz sempre atenta em defesa da Constituição e dos direitos e garantias fundamentais", num manifesto cuja primeira assinatura é do ilustre professor Goffredo da Silva Telles Júnior.
O tempo está passando, e nada se tem alterado. Continua o processo de estrangulamento e destruição do Judiciário; as poucas vozes que se erguem para defendê-lo afirma-se estarem a serviço do corporativismo e dos privilégios.
Não são ouvidas; ao contrário, são silenciadas. Não repercutem; são abafadas pelo som barulhento dos protestos ou de ironias grotescas. A emoção tem prevalecido sobre a razão. E esse quadro é deletério para os interesses perenes do Estado brasileiro.
As grandes ditaduras sempre se utilizaram sobremaneira de elementos afetivos e estimularam atitudes emocionais, mediante um sistema de propaganda de massa fundado em imagens. Exploraram, conscientemente, toda a força do simbólico para atingir o inconsciente coletivo.
Grande parte da população condiciona seus pensamentos por imagens, que movem a força da imaginação e iluminam o sentido do tema em debate. Assim, mitos são criados e transmitidos à sociedade, que passa a atuar de acordo com eles sem a preocupação de verificar se expressam a verdade.
As distorções daí resultantes são conhecidas. Em época relativamente recente, usaram desse processo o nazismo, o fascismo e o comunismo. Dele também se serviram muitas ditaduras, que se instalaram neste continente não faz muito tempo. As suas nefastas consequências são notórias.
Despertar emoções e gerar mitos constitui o meio mais fácil de direcionar a mente do povo, vítima de terríveis desequilíbrios sociais, para atingir objetivos aparentemente justos, mas inalcançáveis.
É um caminho perigoso, que leva a frustrações e fracassos, com graves repercussões de ordem institucional. A palavra "justiça" traduz uma idéia-força de grande prestígio -mas, se deturpada, produz "justiceiros".
Hoje, a opinião pública, influenciada pela mídia, absolve ou condena com facilidade e desprezo à regra do devido processo legal, em gravíssima violação do princípio do direito de defesa.
A atuação dos juízes, que estudam direito longos anos e são investidos no cargo após aprovação em rigoroso concurso público, é pura e simplesmente substituída pelo julgamento popular.
As consequências são trágicas. A honorabilidade de cidadãos, construída ao longo dos anos, é destruída absurdamente no espaço de horas; famílias e instituições são execradas e desmoralizadas. Todos se recordam do dono de colégio em São Paulo que teve reputação e família difamadas, acusado de corrupção de menores. Ou do caso das bicicletas, envolvendo o ministro Alceni Guerra. Para onde vamos?
Há pouco, o jornalista Luís Nassif denunciou, com grande percuciência, tal comportamento, sustentando que a mídia emocional deve ceder lugar à investigativa, muito mais trabalhosa e, por isso mesmo, só utilizada por grandes profissionais.
O Judiciário é o hospital do direito, na simplicidade do dizer. Na sua essência, o direito doente, corporificado em litígios, lhe é submetido à apreciação.
Não se pode esquecer, contudo, de que o Poder é vítima das mesmas adversidades que têm atingido a rede de saúde, o ensino -enfim, o Estado brasileiro. Tem lutado, com a atuação cada vez mais intensa dos seus membros, para se livrar das suas deficiências e mazelas. Não dispõe do cofre ou da espada, não legisla. Pouco lhe resta além de denunciar.
Mas um fato é inconteste: a só existência do Judiciário inibe muitos atos violadores dos direitos fundamentais e das garantias constitucionais por parte do poder público e dos poderosos.
Haja vista, para citar apenas alguns exemplos, o confisco dos cruzados levado a efeito pelo Plano Collor, o caso dos aposentados do INSS e os sucessivos impostos e taxas inconstitucionais criados pelos entes estatais, situações em que o Judiciário garantiu aos cidadãos a salvaguarda de seus direitos ameaçados e violados.
Enfraquecer o Judiciário é estimular o arbítrio e a injustiça que já grassam no país. Será isso que a sociedade brasileira deseja? Creio que não. Que os setores responsáveis estejam alertas, pois, sem um Judiciário independente e respeitado, o futuro da sociedade brasileira será pouco alvissareiro.

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