São Paulo, domingo, 5 de outubro de 1997
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Querido papa

FREI BETTO

Vós chefiais a igreja na qual dedico minha vida à proposta de Jesus. Sois o sucessor de Pedro. Tendes outros títulos. Não me agradam. "Vossa Santidade" soa-me impróprio à nossa comunidade de pecadores. "Sumo pontífice" era pagão antes de ser cristão. O imperador Otávio Augusto, que reinava quando Jesus nasceu, adotou essa denominação honorífica.
Vossa imagem desenha-se, a meus olhos, diferente daquela que os Evangelhos retratam de Pedro. O chefe dos apóstolos era casado, pois Jesus curou-lhe a sogra. Sois celibatário e não permitis que o celibato volte a ser, na Igreja Católica, um carisma distinto do carisma do sacerdócio. Nos Evangelhos, é proeminente a presença de mulheres ao lado de Jesus: Maria de Nazaré, Maria Madalena, Joana, Susana, Maria, mãe de Cléofas; Salomé, mãe de Tiago e João; e várias outras.
Onde estão as mulheres do grupo do papa? Como se chamam? Por que, tendo Deus criado homens e mulheres à sua imagem e semelhança, são elas impedidas de acesso ao sacerdócio, ao episcopado e ao papado?
Sois um homem de coração à esquerda e cabeça à direita. Não vos agradam a Teologia da Libertação e as inovações suscitadas pelo Concílio Vaticano 2º. Ah, que grande alegria se o vosso pontificado canonizasse o papa João 23!
Exigistes do presidente Fernando Henrique Cardoso, em Roma, empenho na reforma agrária. Ao presidente Sarney dissestes que "no Brasil não haverá democracia enquanto não houver reforma agrária". E agora, ao chegar ao Brasil, denunciastes as desigualdades sociais e citastes os sem-terra.
Tivestes a humildade de, em nome da igreja, pedir perdão pela equivocada condenação a Galilei Galileu. Por que não vos permitiram receber no Rio famílias de sem-terra? Haverá no futuro um papa que reconheça como certos cardeais romanos foram duros com Leonardo Boff e Ivone Gebara?
Viestes ao Rio tratar da família. Sabeis que a família monogâmica, patriarcal, branca e europeizada é um entre tantos modelos. Qual o modelo cristão? Minha amiga Dora, favelada do ABC, que era surrada toda semana pelo marido alcoólatra e, hoje, refaz sua vida afetiva com Luiz merece ser considerada família?
E por que lhes é vetado o acesso aos sacramentos? Julgais que Deus, em sua bondade, nega ao casal o sacramento maior da compaixão? E meus amigos Renato e Lúcio, que vivem juntos e comungam seus afetos, seriam aos olhos do pai de amor uma família?
"Deus é amor", proclama o Novo Testamento. O amor é o maior dos mandamentos. E por que meu amigo Cláudio, tetraplégico, não pode merecer a bênção matrimonial em suas núpcias com Teresa?
Quis o Criador que, nos animais, coito e procriação não diferissem. Quis também que entre o homem e a mulher a atração seja transfigurada em ternura, o afeto em carinho, o toque em comunhão de corpos e de espíritos. Toda essa liturgia que faz do erotismo ágape é um pecado, se não há intenção de procriar?
Sabíeis que o Brasil é o terceiro país do mundo em casos de Aids? Porém Roma não admite que se usem preservativos. A disseminação da morte não seria algo muito mais grave que o prazer do sexo estéril? E por que não condenais a fabricação e o comércio de armas, bem como a pena de morte, com a mesma veemência com que abominais o aborto?
Pena que a vossa visita seja tão breve a este país. Quisera convidar-vos a conhecer as Comunidades Eclesiais de Base, nas quais Jesus é tão vivo na fé e na esperança dos pobres.
Pudesse, levar-vos-ia também às igrejas evangélicas em que a palavra de Deus povoa corações e a vossa figura é apreciada. Depois, aos terreiros de candomblé, nos quais negros e brancos celebram uma liturgia mística que torna as pessoas mais generosas e solidárias. Veríeis também os ritos indígenas que varam a noite e, ao som de flautas e tambores, evocam a sacralidade da natureza como expressão do Criador.
Essa gente, meu pastor, traz na mente e no sangue tanto sincretismo quanto os cardeais romanos. Pois não é verdade que o modelo de igreja romano traz marcas visíveis de influências pagãs e judaicas? O governo dos césares não teria incutido em alguns de nossos prelados o gosto de ser chamados "príncipes da igreja" e habitar em palácios? Por que não retornar à simplicidade de Jesus, ao despojamento dos apóstolos, à pobreza evangélica?
E, antes de deixardes o Brasil, quão felizes ficaríamos todos com a visita de Pedro à pedra sobre a qual se ergue a Igreja Católica no Brasil nesta segunda metade do século: dom Hélder Câmara, o profeta.

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