São Paulo, segunda-feira, 6 de outubro de 1997
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Memórias do catálogo da Sears

HELCIO EMERICH

Diz a lenda que ninguém que nascesse nos Estados Unidos poderia se considerar um legítimo cidadão norte-americano se não tivesse lido pelo menos dois livros: a Bíblia, ministrada como bálsamo para as feridas da alma, e o catálogo da Sears, para satisfazer a todas as carências não espirituais da natureza humana.
Os tradicionalistas se alegram pelo fato de a Bíblia continuar sendo editada, mas com a morte do cartapácio da Sears, decretada no início dos anos 90, desapareceu um dos mais venerados e duradouros símbolos da cultura do consumo, um livro em cujas páginas ficaram registrados, por mais de um século, os tempos de euforia e depressão da sociedade americana.
Apesar da predominância das ilustrações e das fotos sobre os textos, ele estimulou milhares de pessoas ao hábito da leitura e ajudou a desenvolver na massa da população o sentido do gosto e da moda. Seus anúncios de lingerie criaram o estereótipo da garota pin-up e erotizaram várias gerações de "american boys".
No apogeu da Guerra Fria, na década de 70, alguém chegou a sugerir (deve ter sido o Alex Periscinoto) que os Estados Unidos bombardeassem a União Soviética com o "big book": a fartura e o fascínio das ofertas do catálogo se encarregariam de mobilizar o povo soviético para derrubar o regime comunista.
Também conhecido como "o livro dos desejos", o guia de compras da Sears foi lançado em 1886 com uma edição que trazia apenas anúncios de jóias e relógios.
Dez anos depois, ele seria transformado num catálogo geral, que permitia ao consumidor adquirir de anzol a vagão ferroviário, de sementes de plantas às obras completas de Dickens, de sal de banho a um violino Stradivarius. Durante algum tempo, era possível comprar pelo catálogo um automóvel e uma casa (mobiliada ou não, conforme o gosto do cliente) com garagem para guardar o veículo.
O livrão gerava filhotes: eram os guias que agrupavam famílias de produtos sob um determinado tema. O primeiro, de 1905, foi o "Lovers Guide And Manual", que ensinada aos namorados regras de etiqueta e de convivência a dois (como se comportar à mesa, em bailes, no carro etc.). E tome oferta de lenços, sombrinhas, luvas, leques, perfumes, postais).
Os arquivos do livro guardam histórias, como a do anúncio que trazia uma amostra de um novo tipo de toalha para mesa, de papel. Nas zonas rurais dos Estados Unidos a amostra foi usada como papel higiênico. Ou o caso de um fazendeiro do Tennessee, que escreveu aos editores do catálogo querendo comprar uma esposa "que fosse limpa e soubesse cozinhar". Uma solitária professora das montanhas de Idaho mandou uma carta à Sears juntando o recorte do anúncio que mostrava um modelo masculino, na faixa dos 40 anos, promovendo um conjunto de terno, capa e chapéu. Ela perguntava se a loja poderia lhe mandar o homem, "conforme anunciado na última edição".

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