São Paulo, segunda-feira, 6 de outubro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

E nós que amávamos tanto a revolução

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

E olha que não superestimo o fenômeno. Vi adolescentes trabalhando como prostitutas, nos hotéis de Manaus, usando um pager na cintura. A técnica sabe se ajustar às mais perversas situações sociais.
Intuí num certo momento que o telefone celular seria um instrumento de massa. E via isso nos motoristas de táxi de Brasília, nos prestadores de serviço. Estava mais ou menos evidente, mas, ao mesmo tempo, coberto pela aura de instrumento yuppie.
Essa revolução tecnológica tem um sentido, e, por acreditar na sua amplitude, cheguei a romper com minha família política, a esquerda, votando na quebra do monopólio das telecomunicações. No avião de volta ao Rio, uma passageira virou-se para mim e disse em voz alta: "Traidor". Segurei a onda, porque sabia que víamos duas realidades diferentes.
Há pouco tempo, no congresso do PT, alguém gritou no fundo da sala: "E meu telefone celular?". Como se estivesse prometendo o espelhinho que os colonizadores ofereciam aos índios. Mas acredito que estamos diante de um dos mais poderosos instrumentos de trabalho já produzidos pela história humana.
Nos debates sobre o tema, sempre mencionei o Nokia 9.000, um aparelho que é telefone, envia fax e permite acesso à Internet. Vejo agora os telefones que se usam em Tóquio, os PCS, usando estações retransmissoras e funcionando até dentro dos metrôs.
A pesquisa do "The Economist", um longo ensaio sobre o tema, prevê que esses telefones, ao serem também um acesso à Internet, podem se tornar uma espécie de coqueluche da juventude. Bichinhos de estimação virtuais já não morrerão de fome, pois poderão ser enviados para um amigo que cuide deles na ausência do dono.
A pesquisa do "The Economist" fala também dos escritórios reduzidos às fotos da família e a alguns objetos familiares guardados num escaninho. Podem ser montados em qualquer quarto de hotel e entram em linha com os arquivos de sua empresa.
Esse admirável mundo novo autoriza um mínimo de deslumbramento. Pode ser que o telefone celular já tenha provocado mudanças muito mais profundas na vida real do que alguns programas políticos. E isso é apenas uma pequena parte das transformações.
Fui ver a feira das televisões a cabo em São Paulo. Estavam todas lá, e, por coincidência, vinha da casa de uma amiga no interior do Rio. Ela conseguiu viver numa cidade do interior porque sua vida cultural se ampliou enormemente com todos os canais disponíveis e ainda o sistema de pagar por exibição.
Num encontro com pessoas portadoras de deficiência, em Brasília, cheguei até a vislumbrar a possibilidade de um canal para tratar do problema, com uma programação integrada e muito talento. Imaginei todos os outros canais que podem surgir e o potencial de revolução que isso traria à mídia convencional.
Quando debatíamos a questão do mercado de trabalho, isso ficou claro. Quem tivesse telefone, TV, computador e modem teria um instrumento para superar algumas das dificuldades do momento. Poderia criar flexivelmente novas possibilidades de emprego.
Clinton, há duas semanas, reafirmou seu projeto de fazer com que todas as crianças com 12 anos saibam utilizar a Internet. Tony Blair disse algo parecido, no congresso do Labor. Determinar um tipo de projeto como esse num país como o Brasil seria pura e simplesmente macaquear o que se passa lá fora?
No livro "The New Telecommunications", Robin Mansell afirma que as perspectivas econômicas e sociais de países, regiões, empresas e indivíduos vão depender da infra-estrutura das telecomunicações. Pelo menos na minha curta observação aqui no Brasil, vi muita gente ampliar sua capacidade com o celular.
Em Brasília, já não é mais um instrumento de elite. Ele vai se espalhando em outras cidades do Brasil, dando o mínimo de flexibilidade para sobreviver num mercado de trabalho rarefeito.
Simbolicamente, na minha vida, essa revolução tecnológica foi a linha divisória.
Talvez porque os adversários insistiam em negar o fenômeno. Se pelo menos dissessem "isso é mesmo magnífico, mas precisa ser interpretado", talvez não tivessem me assustado.
Agora temos todo o tempo para ver até que ponto nos iludimos com as aparências, o que vai restar disso tudo na próxima década. Até lá, certamente, os meios técnicos para a democracia direta estarão bem desenvolvidos e vão tornar nosso papel relativo, os heróis e traidores que gravitam na democracia representativa.
Aí poderemos fazer uma autocrítica de qualquer lugar do mundo para qualquer lugar do mundo. Estará em cena o projeto Iridium, com dezenas de satélites, oferecendo o instrumento planetário. Quer dizer: se as coisas não se resolverem por aqui, poderemos comprar nosso telefone no Paraguai.

Texto Anterior: Andy Summers, discreto, toca na Bahia
Próximo Texto: "Body" mostra o corpo na Austrália
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.