São Paulo, segunda-feira, 6 de outubro de 1997
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Os ônibus da política

JOSÉ SERRA

Nos anos 70, o então professor Fernando Henrique Cardoso, analisando o MDB, definiu-o apropriadamente como partido-ônibus, ou seja, um conglomerado de passageiros políticos diferentes que, juntos, procuravam atingir o ponto final do regime autoritário.
Atingido o objetivo, esperava-se que tal ônibus se tornasse obsoleto, com as disputas eleitorais democráticas e a fragmentação partidária. Mas a previsão não se materializou desse modo. O ônibus grande sumiu, mas surgiram vários outros, só um pouco menores. Por quê?
Pelo menos três fatores colaboraram: as desigualdades regionais, que criam enormes diferenças entre as secções estaduais dos partidos; as distorções nas representações estaduais na Câmara Federal e o sistema eleitoral proporcional (em oposição a um sistema distrital) que enfraquece notavelmente as unidades partidárias.
Ficássemos só com esses problemas já bastaria. Mas, como lembra a lei de Murphy piorada, se algo mais puder dar errado, dará. Por isso os ônibus da redemocratização passaram a ser mais completos que o seu antecessor, despejando e recolhendo passageiros, em cada esquina, freneticamente.
Vejam que dado impressionante: nesta legislatura, na Câmara de Deputados, houve 267 mudanças de partido. Isso equivale a mais da metade do total de parlamentares.
Em qualquer regime democrático é possível e cabível políticos mudarem de partido. Mas, no caso brasileiro, o volume e a frequência das mudanças são hipertrofiados, comprometendo seriamente a qualidade de nossa democracia e do nosso sistema político.
O frenesi de mudanças partidárias ocorre porque os partidos (a maioria) tendem a ser meros cartórios, que detêm dois recursos: os horários gratuitos na TV e o acesso às benesses governamentais. Fechando o círculo, o caráter flutuante de sua população de políticos enfraquece os partidos e reforça seu papel cartorial: passam a expressar não os setores da sociedade, mas os interesses de políticos em busca de perpetuar sua própria condição.
Nem o PSDB tem estado distante desse círculo vicioso. Nasceu com a intenção de ser menos heterogêneo do que a média -um microônibus- e, certamente, não ser atracadouro de políticos que pensam exclusivamente em encostar-se nos governos ou viabilizar sua próxima eleição.
Como sói acontecer, porém, a conquista de expressiva fatia do poder político aumentou a demanda pelo ingresso no PSDB de políticos desse gênero. Mas imperdoável foi aumentar a oferta de lugares, com abertura de porteiras, em alguns Estados e na Câmara Federal. Nessa última, a bancada de deputados aumentou mais de 50%, desde janeiro de 1995 (62 para 95). O pretexto foi ampliar a base de apoio ao governo e conquistar mais lugares em comissões da Câmara. Uma tolice que só reforça a natureza gelatinosa da base governamental.
Com o PMDB foi assim, tanto que criou-se o verbo "peemedebizar" para os partidos que estão a caminho de se transformar na negação de sua origem. No simétrico do recíproco.
A doença do PSDB não é ainda terminal. O verbo acima aplica-se a ele no gerúndio, não ainda no pretérito perfeito. Ou seja, ainda há e tem de haver mais tempo para salvá-lo. Do contrário, o leitor já imaginou começar tudo de novo?

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