São Paulo, quarta-feira, 8 de outubro de 1997
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Legalização do estelionato

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

Quando o resultado do lobby dos donos de empresas e de bancos no Congresso é festejado por setores importantes de certa mídia oficialista, o cidadão pode se preparar para ter, mais uma vez, seus direitos desrespeitados e ainda ser obrigado a agradecer. É o que está acontecendo, nesta hora final, com a questão dos planos de saúde.
Não sei com que grau de ingenuidade se pode entender como vitória do usuário -proclamada por alguns articulistas, em coro com deputados governistas- o projeto da tríade relator/Abramge/governo, que legalizará as condições seguintes.
1) Exclusão de transplantes (até o renal), inseminação artificial (40% dos casos de esterilidade), sarampo, dengue (epidemias), órteses e próteses etc. Possibilidade de excluir todas as ações hospitalares (plano ambulatorial) e, com a carência de dois anos para doenças preexistentes, Aids, câncer, hipertensão, diabetes e outras; tudo isso agravado pelo não-fornecimento de medicamentos para tratamento ambulatorial (arts. 10, 11 e 12). O projeto exclui tudo o que é caro e relevante nos tratamentos de doenças mais graves.
2) O impedimento de reajuste das mensalidades por idade, somente após os 60 anos e limitado àqueles que pagaram o mesmo plano por dez anos ou mais. Ou seja, quase ninguém.
3) Permissão para continuidade de pagamento de planos coletivos para demitidos ou aposentados, nas mesmas circunstâncias absurdas e com aumento de, no mínimo, 100% -isto é, pagamento pelo usuário da parte patronal (artigos 15, 29 e 30).
4) Permissão de venda de planos que se reduzem só a tratamento ambulatorial, sem nenhum direito a internação, e vice-versa (art. 12). É a venda do supérfluo e a negação do essencial.
5) A inadimplência fixa de dois meses. Ou seja, o cidadão paga 20 anos (240 meses), atrasa dois meses (0,8% do tempo pago) e perde totalmente seus direitos (artigo 13). É o que se pode chamar de cláusula leonina.
6) A Susep e o CNSP, órgãos de defesa das companhias de seguro, mantêm a hegemonia da coordenação e da fiscalização do processo, no qual não há nenhuma participação dos usuários e a do Ministério da Saúde é puramente simbólica (artigo 3).
O relator não estabelece nenhuma cláusula para pagamento minimamente digno ou condições adequadas para os trabalhadores de saúde. Sofre também o usuário.
Não foi por outras razões que a sociedade civil brasileira -representada por entidades como o Conselho Nacional de Saúde, o Conselho Federal de Medicina, a Associação Médica Brasileira, o Sindicato dos Médicos, o Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde), o Procon, o Idec e outras, além de presidentes de várias entidades de usuários (renais crônicos, aidéticos, deficientes físicos)- repudiou publicamente e por escrito, nos últimos dias, o projeto substitutivo do relator e apoiou o projeto nº 3.607.
É o escárnio do neoliberalismo seletivo do governo, que jamais colide com os interesses da elite econômica e, agora, degenera em outra barganha, mais despudorada do que aquela que vendeu (doou) o subsolo brasileiro, a indústria farmacêutica ou a Amazônia.
Dessa vez, está empurrando o trabalhador e a classe média brasileira, como seres descartáveis, para fora do sistema público de saúde e oferecendo essa "rica massa pobre" para ser explorada pela venda maciça de um produto enganoso numa área sagrada e de responsabilidade do governo, que é a saúde.
Ao fazê-lo, o Ministério da Saúde, pressionado pela área econômica, desincumbe-se de tarefa constitucional (art. 196), legaliza o estelionato e obtém o apoio de boa parte da "mídia possuída pelo elegante ceticismo do pensamento pós-utópico" (segundo Luiz Gonzaga Belluzzo).
Essa mídia não cobra do governo eficiência com os R$ 200 por habitante por ano. Essa quantia seria suficiente para resolver o problema dentro do sistema público -como bem coloca a Folha em seu editorial de 6/10- se houvesse competência e honestidade na aplicação das verbas existentes.
É lamentável que estejamos aprofundando no nosso país a crise social do obscurantismo econômico retrógrado, sem perceber que já se esboçam reações contrárias -seja na civilizada Inglaterra, com a recriação do "Welfare State" por Tony Blair, ou no México, com o "zapatismo", retomando a utopia da Revolução Francesa em um autêntico redirecionamento político moderno, baseado na agitação de consciências. Onde está a nossa?

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