São Paulo, sexta-feira, 10 de outubro de 1997
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Leonhardt reconstrói o barroco

MARCELO MUSA CAVALLARI
DA REDAÇÃO

Se artistas já foram elogiados por serem capazes de mostrar a alma, Gustav Leonhardt vai mais longe. Ele mostra o espírito.
Em seu último concerto em São Paulo, na quarta-feira, Leonhardt interpretou ao cravo o repertório alemão em que se sente mais em casa. Tocou peças de Georg Bõhm, de Johann Sebastian Bach e de seu filho Wilhelm Friedemann Bach.
Interpretar, no caso desse músico holandês com 47 anos de carreira, aplica-se em sentido filosófico.
Leonhardt é um dos pais fundadores da escola historicista de interpretação. Trata-se, numa descrição tosca, de se aproximar do repertório anterior ao século 19 -preferencialmente- buscando a maneira como ele soaria à época.
Há, no entanto, várias maneiras de se aproximar de uma obra intelectual do passado. Imagine-se um livro. É possível lê-lo numa edição moderna para saber como pensavam os antigos. É possível ver em uma exposição o manuscrito ou a primeira edição. Por fim, é possível lê-lo para aprender com os antigos o que do mundo só eles perceberam.
É exatamente isso o que Leonhardt faz. Não se trata de fingir que se está no século 18 -tarefa mais própria dos museus de cera. Trata-se de ouvir o que Bõhm, Bach e seu filho -no caso da noite de quarta-feira- tinham a dizer sobre o mundo.
A absoluta maestria de Leonhardt -a precisão da articulação, a leveza e rigor rítmicos, a expressividade- serve às idéias.
O barroco é um mundo ideal para um músico com a envergadura intelectual de Leonhardt. Num mundo escuro e opaco -distante da glória racional do medievo e do brilho fanfarrão da Renascença-, o barroco constrói retoricamente a lógica tortuosa de que tanto sente falta.
Leonhardt não deixa nunca a idéia central, o tema do coral, se perder. Sem esconder a complexidade da construção das vozes.
Bach é quase uma invenção de Leonhardt. Ele foi um dos primeiros a perceber que o compositor era tão mais significativo quanto mais se deixasse sua música como ele mesmo a fez. Sem orquestrações, sem fortes e pianos que o piano permite e o cravo não.
A clareza com que Leonhardt se explica tocando tornou-se especialmente recompensadora nas peças de Bach da primeira metade do concerto: duas fantasias e o "Prelúdio", "Fuga" e "Allegro BWV 998".
Que há algo de charada na maneira como se constrói a harmonia e o contraponto barrocos, sabe-se. Nas mãos de Leonhardt, a solução das charadas vira demonstração de teoremas. E teorema liga-se etimologicamente a contemplação, a forma mais humana de prazer.

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