São Paulo, sexta-feira, 10 de outubro de 1997
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A crítica continua tentando erguer destroços

GERALD THOMAS
EM NOVA YORK

Junto com o século e o milênio, a "crise" da arte moderna está chegando ao fim. Quem está perdida, agora, é a crítica. Depois de cem anos torcendo, pervertendo, destroçando as palavras e os parâmetros na qual a crítica se baseava, os artistas estão livres de seus críticos. Finalmente!
"Crise" é hoje uma palavra encontrada em sebos, em brechós ou em piscinas rasas. O artista que passou os últimos cem anos olhando para o umbigo de cada etapa do seu próprio processo de criação voltou a olhar para o mundo e a se encantar com ele. O artista que havia encontrado, nesses últimos cem anos de desconstrução, uma forma de materializar seus existencialismos por meio de analogias e metáforas voltou a se fascinar pelos mistérios do universo e da criação.
Mas a crítica não. Ela continua tentando erguer os destroços, as ruínas deixadas para trás. Vistoriam e classificam cada caco, catalogam cada dejeto deixado para trás pelo artista, às vezes nada mais que uma brincadeira, um trocadilho. A crítica pode levar a sério a brincadeira do artista e cristalizá-la como tal.
A obra de arte nasce do acaso. Só Deus sabe como ela acontece. Cada obra nada mais é do que um emaranhado de significados que nem sempre o próprio artista entende. Amedrontado por tantos significados, o artista brinca, passa pela sala correndo e esbarra nas coisas, tropeça numa roda de bicicleta, corta a orelha, entorta os bigodes, deixa para trás uma tremenda bagunça.
No início da década de 90, encenei uma peça, "M.O.R.T.E.". Muito longe do que essa palavra significa, a peça (Movimentos Obsessivos e Redundantes para Tanta Estética), falava justamente do contrário. No samba que encerrava o espetáculo, Bete Coelho bradava com entusiasmo e otimismo: "Que chova sobre a nossa poesia!" Não vou publicar aqui a letra integral do samba, mas a essência da coisa conclamava os novos poetas, os novos artistas, a se expor a um futuro longe da crise que abalou a arte contemporânea e que a deixou moribunda por causa de tanta auto-análise.
Eu achava então, como acho hoje, que o artista deveria abrir as portas do acaso, ser generoso com manifestações externas ao processo pessoal dele, apagar o ranço de tanta história, de tanta estética, de tanta discussão, de tanto fascismo. Em suma, "M.O.R.T.E." era a "anticrise", a "antimorte", era o próprio vislumbramento do futuro.
O que é mais engraçado é o provincianismo que enclausura o crítico. No mesmo ano em que fiz "M.O.R.T.E.", fiz também quatro outros espetáculos espalhados pela Europa, com os títulos mais diversos. Dependendo de onde residia o crítico, seu julgamento raso queria me classificar -eu como um todo- de acordo com o espetáculo que vira naquele país. Podia ser "M.O.R.T.E." em um, "V.I.D.A." em outro, "Gonorréia" num terceiro e, por último, "Árvore".
Se cada título é para ser tachado como uma fase duradoura, imaginem a minha personalidade só naquele ano! O artista já é, em essência, um ser generoso suficientemente para poder "herdar" situações que não lhe pertencem, enfim, virar (temporariamente) uma outra pessoa. Esse camaleonismo acontece somente por causa de uma curiosidade (ou necessidade) de se transformar em tudo e em todos para tentar entender aquilo que Shakespeare sintetizou tão genialmente.
Aliás, qual seria a "crise" de Shakespeare? Seria o "ser ou não ser?" Ou seria aquela que se resolveu no "perdão final" de a "Tempestade" ou ainda teriam sido as circunstâncias político-familiares que tornaram paranóico o Rei Lear? E Beckett? Se logo no início de sua vida dramatúrgica ele esperou por alguém que jamais veio e, logo depois, decretou "Fim de Jogo", como pode viver, trabalhar e continuar revolucionando o teatro mundial com seus "sons claros e escuros"?
Como seriam vistos esses autores hoje, se a crítica tivesse isolado, aprisionado toda a sua obra a partir de uma única peça? Se a crítica se recusa a dialogar com o artista, ela não está sendo crítica, está sendo somente trivial.
Mas a crise da crítica é problema dela. O artista sempre acha maneiras de se reinventar. A capacidade de se tirar da inércia é o segredo da vocação. "Pouco resta a dizer", dizia Beckett em "Ohio Impromptu". Então, mesmo sem as profundezas filosóficas que pontuaram os últimos milênios de nossa humanidade, hoje diz-se, realmente, pouco.
Fiquei surpreendido com o filme "Full Monty", justamente porque ele consegue ser uma inteligente paródia entre a falta de comunicação entre a arte e a crítica. Claro que não dessa forma. O filme lida com cinco ingleses desempregados na feia cidade industrial de Shefield.
Lutando contra o "nada a fazer" e sem disposição a continuar vivendo do seguro-desemprego, os cinco tipos traçam um plano para se tornarem "strippers" num clube frequentado por mulheres. Os cinco têm tudo pra dar errado, pois seus tipos físicos nada têm em comum com aqueles "bofes" que fazem o "tease".
São criticados antes mesmo de o evento se tornar realidade. Ficam num beco sem saída. Ou permanecem "gente desempregada", ou viram "artistas". Optam pela arte, é claro. Mas qual arte? A de tirar a roupa na frente de mulheres? "Isso é arte?", pergunta a mulher de um personagem do filme? "Não, não é. Mas tenho que transcender a minha forma e a minha mortalidade, então, mesmo não sendo arte, vou me tornar um artista." A ironia é óbvia e o público morre de rir, pois não poderia existir diálogo mais "camp".
Cada um ouve coisas que poderiam ser tiradas diretamente do vernáculo dos críticos de arte deste século. É hilariante. Os cinco atravessam todos os tipos de acusação, mas não desistem. Uns levam o que ouvem a sério e ficam paralisados. Não conseguem prosseguir com os planos. Outros viram as costas e saem andando, sorrindo, como Aristóteles quando jogou fora a mochila pra ficar mais leve.
Depois de ensaios desastrosos e muitos acidentes de percurso, os cinco estréiam vitoriosos. No final, após os urros e aplausos da platéia, os cinco se vestem e saem do teatro. Passam por um "pub" onde o mais magro deles encontra um amigo de infância. O amigo o chama de gordo, pois o magro de hoje fora gordo na infância. Não adianta a figura atual de absoluta magreza, o seu nome naquele "pub" continua sendo "fatty". Tem gente que não consegue se adaptar. Isso soa familiar?

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