São Paulo, sexta-feira, 10 de outubro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LOUIS ARMSTRONG

TERRY TEACHOUT
ESPECIAL PARA O "NYT BOOK REVIEW"

Minha piada preferida sobre Louis Armstrong diz respeito ao seu encontro com o papa Paulo 6º.
O papa, assim contam, perguntou a Armstrong se ele e sua esposa tinham filhos. "Não, paizinho", replicou alegremente o trompetista, "mas ainda estamos nos lamentando."
As chances de Armstrong ter realmente dito isso são quase nulas, mas é o tipo de coisa que gostaríamos que ele houvesse falado, e os dois homens de fato se encontraram no Vaticano em 1968.
Foram fotografados juntos, e pode-se ver um cintilar inconfundível de prazer no rosto esgotado do papa; quanto a Armstrong, parece absolutamente feliz.
Talvez estivesse pensando no quão longe havia chegado, de Nova Orleans, onde nasceu na completa miséria, em 1901, filho bastardo de uma menina de 15 anos que não fazia a mínima idéia de que seu filho mudaria a cara da música ocidental.
Ele não inventou o jazz nem foi sua primeira figura importante, e não é nem mesmo certo chamá-lo de primeiro grande solista do jazz (Sidney Bechet veio antes dele, e Bix Beiderbecke emergiu ao mesmo tempo que Armstrong, quase no mesmo mês).
Mas se tornou a primeira grande influência do jazz, e uma das razões pelas quais permanece lenda é que foi tão grande como personalidade quanto como músico.
Tal homem é assunto natural para biógrafos. O último deles acabou de nos presentear com o primeiro estudo completo sobre Armstrong baseado em seus escritos particulares, agora de posse do Queens College's Louis Armstrong Archives.
Porém Laurence Bergreen é um biógrafo, não um estudioso do jazz, e a primeiríssima frase do seu livro "Louis Armstrong - Uma Vida Extravagante" aponta para uma confusão: "No início, ele era um som e somente um som, uma estranha mistura de cacofonia feliz e miado atormentado".
Nenhum compositor de jazz que se respeite teria permitido que uma frase como essa fosse impressa, e Bergreen, apesar de ser claramente um pesquisador assíduo, escreve como se o jazz fosse uma língua estrangeira que ele houvesse estudado já tarde na vida com o único propósito de escrever a biografia de Armstrong.
Inúmeras outras passagens sugerem, colocando a coisa o mais sutilmente possível, que Bergreen chegou tarde à festa.
O fato de o escritor não ter nada de aproveitável para dizer sobre o Armstrong músico necessariamente desequilibra seu livro, mas isso não quer dizer que "Louis Armstrong - Uma Vida Extravagante" é isento de mérito.
(Gary Giddins trouxe muito do mesmo material em seu livro de 1988, "Sachtmo", ainda o melhor tratamento de pequeno porte dado à vida de Armstrong.)
Como os leitores de "Sachtmo: Minha Vida em Nova Orleans" (1954) bem sabem, Armstrong foi um maravilhoso escritor, e sendo seus escritos e suas cartas contribuições de suma importância à literatura de jazz, o livro de Bergreen servirá como um meio caminho até que um editor esperto, notando que o centenário de Armstrong está aí, finalmente caia em si.
Deixando Armstrong falar de si mesmo, Bergreen foi feliz em lançar uma luz no aspecto pouco entendido do seu alcance artístico: seu desenvolvimento moral.
Essa frase pode soar frágil quando aplicada a um homem cujo apetite por maconha só se comparava a seu interesse por sexo.
(Armstrong, revela Bergreen, escrevia novelas pornográficas, além de ter traído entusiasticamente todas as suas quatro mulheres.)
Mas, quando o assunto é trabalho, Armstrong foi sem dúvida vitoriano. "Os escritos autobiográficos de Louis, sem suas piadas indecentes e reflexões sobre jazz, podem ser vistos como uma série de lições morais", observa Bergreen.
E ele está certíssimo: o "american dream" não teve exemplar mais leal.
Abandonado por seu pai biólogo ao nascer, condenado aos 11 anos ao Colored Waif's Home, em Nova Orleans, Armstrong não se queixou: ao contrário, devolveu amor aos desprezados e procurou a salvação por meio do trabalho.
"Acho que tive uma vida bonita", contou a um repórter um ano antes de sua morte, em 1971. "Não desejei nada que não pudesse ter e cheguei bem perto de tudo que quis porque trabalhei para isso."
A integridade moral de Armstrong foi apreendida nas palavras que sua mãe lhe disse em seu leito de morte, em 1927: "Filho, vá em frente. Você é um menino bom. Você trata todo mundo bem, e gente branca e de cor te adora. Você tem o coração bom. Não pode se dar mal".
Trinta e sete anos mais tarde, eu o vi pela primeira vez, cantando "Hello, Dolly", no "Ed Sullivan Show".
Eu não sabia quem era o velho com um sorriso de orelha a orelha, mas posso me lembrar da minha mãe me chamando na sala e dizendo: "Esse homem não vai estar por aí para sempre. Um dia você vai ficar contente de tê-lo visto".
Era 1964, quando as escolas públicas de minha cidade natal eram segregadas, duas décadas depois de um negro ser arrancado de nossa prisão municipal, arrastado pelas ruas da cidade amarrado numa corda e incendiado.
No entanto, mesmo num lugar onde tamanha monstruosidade foi cometida um dia, pessoas brancas começaram a amar Louis Armstrong -e, tão importante quanto, a respeitá-lo-, não apenas pela beleza da música que fazia, mas também pelo talento evidente do homem que a tinha feito.
Nesse fato não tão simples, encontra-se o significado definitivo da jornada épica de Armstrong, da esqualidez à imortalidade: sua arte grande e generosa falou a todos os homens em todas as condições e ajudou a fazê-los íntegros.

Livro: Louis Armstrong - Uma Vida Extravagante
Autor: Laurence Bergreen
Lançamento: Broadway Books
Quanto: US$ 30 (564 págs.)

Tradução Ana Carolina Mesquita.

Texto Anterior: A crítica continua tentando erguer destroços
Próximo Texto: Músico foi a personificação do jazz
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.