São Paulo, domingo, 12 de outubro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um momento de Capra

STANLEY CAVELL

Em "Cupido É Moleque Teimoso" ("The Awful Truth", 1936, direção de Leo McCarey, com Cary Grant e Irene Dunne), o casal transforma-se num par de manequins e esvai-se dentro de um relógio suíço; em "Jejum de Amor" ("His Girl's Friday", 1940, direção de Howard Hawks, com Cary Grant e Rosalind Russell), eles vão embora por um lance de escadas; em "As Três Noites de Eva" ("Lady Eve", 1941, direção de Preston Sturges, com Henry Fonda e Barbara Stanwyck), eles fecham uma porta bem no nosso nariz; em "A Costela de Adão" ("Adam's Rib", 1949, direção de George Cukor, com Katharine Hepburn e Spencer Tracy), eles fecham uma cortina; em "Núpcias de Escândalo" ("The Philadelphia Story", 1940, também de Cukor, com Katharine Hepburn, Cary Grant e James Stewart), o trio, e, logo depois, o par principal, imobiliza-se numa imagem fotográfica; em "Aconteceu Naquela Noite", o final consiste numa tela escurecida, quase vazia, na qual não vemos nada senão a queda de um lençol branco e mítico.
Mas a caminhada estrada afora, bem no meio da tela, também parece sugerir algo que termina e, por implicação, algo que começa, um limite que se transpõe. Essa abertura indefinida, bem como esse distanciamento do passado, é a marca daquela inflexão de vulnerabilidade, de antecipação pensativa.
É este o momento de fazer uma pausa para julgar se, em nossa cena, o diálogo é tão desimportante quanto, de modo quase inevitável, fomos levados a supor. Aliás, como pudemos chegar a tal suposição? A partir do que sabemos sobre filmes, ou talvez sobre filmes hollywoodianos? Ou por que certos filmes não podem deixar de usar certas palavras que nos levam (por alguns minutos, por algumas décadas) a tais suposições?
O destino das palavras pode se mostrar tão significativo quanto o de personagens, objetos e lugares. Tomemos a fala da mulher: "Ah, sei. Bem, já andamos bastante ('to hike'), mas quando é que entra a carona ('to hitch')?". Presumo que todos os espectadores (ao menos depois de ver o filme algumas vezes) devem se perguntar se esse "to hitch" diz respeito a "pegar carona" ou a à gíria antiga de "enrolar-se", "casar-se", ou ainda ao que Katharine Hepburn quer dizer em "Núpcias de Escândalo"' (na cena em que explica aos convidados o feliz fracasso de seus planos matrimoniais), ao anunciar que "as coisas se enrolaram" ('there's been a hitch').
Em "Aconteceu Naquela Noite", o homem deveria estar ajudando a mulher a voltar para seu esposo -mas os obstáculos ao casamento ("hitches in hitching") são tema tanto da comédia clássica quanto, sob nova luz, da comédia de segundas núpcias. Essa hipótese encontra apoio no fato de que a mulher está mancando, isto é, andando com dificuldade ("with a hitch"). A tomada de Capra está portanto a nos informar, imediata e ironicamente, que a união final ("hitch") já está em marcha ("hitch"), bem diante dos nossos olhos: um novo nó, um novo trançado de vidas humanas está se fazendo ali mesmo na estrada -algo que, por felicidade, não deverá se desfazer. É essa a moral genérica da comédia de segundas núpcias.
Caminhando
Não resta dúvida de que nossos dois personagens estão caminhando juntos; mas ainda não sabemos o que os espera ao final da caminhada: uma carona ou um casamento. O fato de estarem caminhando só adquiriu importância temática para mim depois que um colega me perguntou o que eu achava da gama de veículos utilizados no filme, sugerindo que estes formam um pequeno sistema de significação tão relevante quanto o sistema que eu discernira para os alimentos (ver o capítulo no livro já mencionado).
De fato, há um iate, um ônibus, um conversível, uma ou duas limusines, um monte de motocicletas, um trem de carga, um avião particular, um helicóptero; pensando a respeito, pareceu-me que os veículos funcionam como emblemas de coisas de que sabíamos já por outras vias -poder, isolamento, vacuidade, disposição para a vida comunitária. Por sua vez, o sistema dos alimentos, seus modos de obtenção e preparo serve de termo de comparação para o grau de inclusão ou rejeição dos indivíduos; no caso em questão, vale lembrar que é o homem que consegue comida e a cozinha para a mulher. O sistema dos veículos funciona por contraste com (e logo por ênfase sobre) o ato humano de caminhar, assim como o sistema dos alimentos enfatizava a contingência humana de sentir fome.
Sentir fome e estar com o pé na estrada são cenas familiares no registro fotográfico da depressão econômica dos anos 30. As comédias hollywoodianas desse período são muitas vezes criticadas como contos de fadas, distrações diante da realidade terrível daqueles tempos. Não nego que muitos desses filmes (talvez a maioria deles) desempenharam tal papel e foram feitos para tanto. Mas as melhores comédias, e em especial as melhores dentre as comédias de segundas núpcias, são histórias que dão vazão à tremenda esperança nas possibilidades humanas que também foi parte daquela época; não saberia de que outro modo explicar sua representatividade, sua persistente popularidade. Em "Aconteceu Naquela Noite", a fome representa uma realidade da imaginação, a imaginação de um mundo melhor, de um modo de vida melhor do que o nosso. É por isso que quero tornar mais explícito um elemento ligado à imagem dos dois caminhando juntos: vejamos onde estão andando.
Por uma estrada
Em quatro das sete comédias que considero definitivas, o desfecho de reconhecimento mútuo é alcançado quando o par central chega a uma situação que, por analogia com a geografia psíquica de Shakespeare, chamarei de "o mundo primaveril" ("the green world"). "Aconteceu Naquela Noite" compensa a falta deste cenário explicitamente mitológico por meio da imagem da estrada -que, por sua vez, é o cenário clássico e não menos mitológico da busca e da aventura picarescas. Essa versão do mundo primaveril no âmbito do união romântica finalmente consumada é, portanto, uma versão da união romântica enquanto processo de busca e aventura.
Há uma outra indicação do caráter mítico e psicológico da estrada. Depois das explicações de Gable sobre as três maneiras de pedir carona, e uma vez provada sua incapacidade de parar qualquer um dos três primeiros carros, a estrada é subitamente tomada por uma avalanche de carros, vindos sabe-se lá de onde para sumir na curva seguinte, todos eles indiferentes ao polegar estendido -como se o melhor desmentido à pretensão masculina de domínio estivesse em mostrar sua incapacidade de influir sobre todos os eventos do mundo.
Esse desmentido cósmico, produzido como que pelo próprio meio cinematográfico, introduz o desmentido seguinte, quando a mulher, em cena famosa, pára um carro com tão só exibir um pedacinho da perna, provando, assim, cabalmente que "uma perna vale bem mais que um polegar", como ela diz toda contente para seu companheiro emburrado (O que constitui um "evento", um "momento" no universo de um filme? O que define o "traço" de um gênero? Essa imagem de Colbert à beira da estrada, levantando a saia até a metade da coxa para assim deter um motorista presumivelmente excitado -clip perfeito para as montagens de momentos famosos que se usam nas transmissões do Oscar- é bom exemplo para uma das exigências específicas ao gênero da comédia de segundas núpcias, a saber: em alguma sequência do filme, alguma parte do corpo da personagem feminina principal deve ser exposta ou posta em destaque, como que para deixar claro que aquele papel só pode ser desempenhado por uma mulher assim).
Ao tomar a estrada por equivalente de reino espiritual de busca e aventura, ao ligá-la à persistência de uma sensação de transcendência, de uma paisagem matinal promissora capaz de criar um momento inaugural, de abertura, reforçado pela desdém cósmico diante da petulância masculina, fui levado a reler, pela primeira vez em muitos anos, a "Canção da Estrada Aberta" ("Song of the Open Road"), de Walt Whitman. Sua 13ª parte começa assim:
"Allons! to that which is endless as it was beginningless,/ To undergo much tramps of days, rests of nights,/ To merge all in the travel they tend to./ Again to merge them in the start of superior journeys" (tradução literal: "Allons! rumo ao que não tem limite como não teve início,/ suportemos percursos diurnos, descansos noturnos,/ para fundi-los todos na viagem a que tendem./ E outra vez fundi-los em jornadas superiores).
E a 15ª e última parte conclui assim:
"Camerado, I give you my hand!/ I give you my love more precious than money,/ I give you myself before preaching or law:/ Will you give me yourself? Will you come travel with me?/ Shall we stick by each other as long as we live?" (tradução literal: "Companheiro! dou-te minha mão!/ Dou-te meu amor mais precioso que dinheiro,/ dou-me a ti diante da fé ou da lei:/ Tu te darás a mim? Viajarás junto comigo?/ Estaremos juntos enquanto vivermos?").
É óbvio que esse estado de espírito é diferente daquele que domina a tomada do nosso casal na estrada vazia e matinal. Mas se tomarmos as perguntas finais de Whitman como linhas-mestras para a invenção de uma nova cerimônia de bodas, veremos que elas se emparelham perfeitamente às questões e tarefas impostas pelo gênero da comédia de segundas núpcias. (Por "invenção das bodas" entendo aquela tarefa que essas comédias têm em comum com o teatro shakespeariano -vejam-se "Antônio e Cleópatra" e "Conto de Inverno"). Noutras palavras, estou propondo que vejamos a tomada dos nossos dois personagens caminhando juntos pela estrada e distanciando-se de nós como uma foto de casamento.
Talvez você aceite essa sugestão por um instante, para logo mudar de idéia. Nem todos os momentos favorecem ou exigem os êxtases e as exortações de Whitman, assim como nem todos os momentos podem tolerar ou encontrar uso para os sentimentos e entusiasmos de Capra. Mas imagino que ambos compuseram suas obras com plena consciência desse fato; que desejavam mesmo pôr em evidência essa percepção sobre a natureza da poesia e do cinema, respectivamente; que reconheceram já então a intermitência de sua eficácia e de nossa disponibilidade. Nos termos de Emerson em "Experience": "Uma vez que lidamos com momentos, que os esposemos e cultivemos" ("to husband"). Ou como o diz Wittgenstein: "O que se dá a perceber aqui dura tanto quanto durar meu modo atual de me ocupar com este objeto". O cinema talvez nos ofereça de modo mais pungente algo que temos em todas as artes: a oportunidade de encontrar, mas também a liberdade de perder, a significação do nada e do lugar-algum.
Estou querendo dizer que Capra é tão bom quanto Whitman, Emerson ou Wittgenstein? Estou querendo dizer que ele tinha em mente os elementos que invoquei para dar conta de um meu estado de espírito ligado a um momento de um filme seu?
Estas são perguntas razoáveis, e merecem respostas refletidas. Por enquanto, posso responder o seguinte: Capra partilha algumas das ambições e visões de Whitman e Emerson, além de saber, no campo das imagens, mais ou menos as mesmas coisas que eles sabiam no campo das letras. Entretanto, caso o leitor mantenha a firme opinião de que filme algum (ou ao menos nenhum filme sonoro hollywoodiano) poderia suportar uma comparação séria com a grande literatura, então nossa conversa terá chegado ao fim, se é que alguma vez começou; pois eu tenderia a ver essa firme opinião (ou atitude) como representativa de um filistinismo intelectual que nada deixa a dever ao filistinismo antiintelectual que sabidamente nos assola.

Nota:
1. Minha primeira versão desse momento apareceu há uma década, em "Humanities", revista de circulação interna do National Endowment for the Humanities, em Washington, DC.

Tradução de Samuel Titan Jr.

Texto Anterior: Autor escreve na Folha
Próximo Texto: Uma modernidade ainda inabordável?
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.