São Paulo, domingo, 12 de outubro de 1997
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Uma modernidade ainda inabordável?

ERIC ALLIEZ

Esta primeira tradução brasileira de um livro de Stanley Cavell -é claro que escolhemos o que nos parecia o mais indispensável, mas outras traduções estão a caminho- há de inscrever-se, por sua vez, no quadro do "efeito Cavell" a que assistimos desde algum tempo nos Estados Unidos e na Europa.
"Efeito Cavell" determinado pela "inquietante estranheza" de um corpus onde o experimentalismo transcendental de Emerson e Thoreau se avizinha de Austin, Wittgenstein (o "segundo" Wittgenstein) e Heidegger (o autor de "O Que Se Chama Pensar?"), através de Nietzsche (e Buster Keaton), Shakespeare, do romantismo inglês e da comédia hollywoodiana do "recasamento" -reunidos de maneira improvável ao fio de uma escrita que força a divisão atlântica de nossas tradições culturais a ensaiar os direitos filosóficos de um materialismo lúdico, onde, "se enuncio que o espírito do vento é o vento, quero que me entendam como enunciando algo, não a propósito de um espírito, mas a propósito do vento (...). Nessa maneira de ver as coisas, o espírito do corpo é o corpo (...). Se se tratar -por isso- de behaviorismo disfarçado, então uma estátua não passa também de uma pedra disfarçada" ("The Claim of Reason", O Apelo da Razão, Oxford University Press).
Ora, para Cavell, este jogo de escrita sobre o espírito do vento, que recusa sua análise lógica ("behaviorista") para abrir-se ao vento do espírito filosófico tal como sopra, exemplarmente, no "Otelo" de Shakespeare ("É no espírito de Otelo que vi seu rosto"), anunciando o liame interno que une ceticismo e romantismo, recoloca a questão do ceticismo, isto é, a problemática da ameaça cética, enquanto impossibilidade de sua refutação (mas, haveria algo a refutar? -tal poderia ser a chave da passagem do primeiro ao último Wittgenstein), selaria o fim das metafísicas do fundamento. E isto, no fundo, pelo menos desde as "Meditações Cartesianas", que mostram, à saciedade, que, se a certeza de Deus é abalada, também o será o fundamento da experiência humana e da prática cotidiana...: o que significa transformar o mundo e o espírito de outrem em objetos entre outros. Para compreender que "o ceticismo já traz em si mesmo os estigmas de uma estrutura trágica", será preciso pensar que essa problemática está inteiramente presente nas grandes tragédias shakespearianas, que precedem apenas de uma geração a formulação da dúvida hiperbólica por Descartes ("Disowning Knowledge in Six Plays of Shakespeare", Denegação do Conhecimento em Seis Peças de Shakespeare, Cambridge University Press).
O leitor já terá, aqui, por sua própria conta, feito uma primeira idéia da maneira pela qual a declaração (e as pretensões: "claim") de nosso ceticismo pode e deve ser "qualificada" pela escrita de Wittgenstein.
Tal é também o objeto da obra seminal, "The Claim of Reason", na retomada incessante da idéia de critério, compreendida, ao arrepio da interpretação convencionalista, como "busca da comunidade" que constitui filosoficamente o cotidiano, e o deslocamento de ênfase consequente, das formas de vida para formas de vida (...).
Mas, já que evoquei um "efeito Cavell", em que a França está largamente envolvida (o tamanho do esforço de tradução basta para testemunhá-lo), apresso-me em sublinhar que devemos evitar celebrar muito rapidamente nesta filosofia -de que "The Claim of Reason" representa a primeira fase, teoricamente situada "nos anos 1958-1961", com a tese intitulada "The Claim to Rationality", defendida em 1961 em Harvard- uma incerta reconciliação entre as tradições continentais de inspiração fenomenológica e analítica, na medida em que a crítica do fundamento, remetida ao fato de que "não existe nenhum senso comum que possa fazer concorrência ao ceticismo" e que "nossa vida cotidiana pode ser compreendida como a expressão de um ceticismo em ação" abala o alicerce comum tomado de empréstimo ao kantismo, sobre o qual são elaboradas essas duas formas de filosofia. Portanto o Wittgenstein da análise dos jogos de linguagem e dos conceitos, na medida em que são "expressão de nossos interesses" ("Investigações Filosóficas", 570), e o Heidegger leitor de Nietzsche (por sua vez, leitor de Emerson) em perpétuo debate com a filosofia kantiana sobre a questão da "Autonomia" ("Self-reliance") para produzir uma espécie de "Crítica da Razão Pura" invertida. Pois é a partir de Emerson que é preciso recomeçar, para encontrar um começo que parta em vez de chegar: o que leva Cavell a sublinhar que "o desacordo essencial, comum a Emerson e Thoreau, com Heidegger é que a consumação do humano não requer a habitação e a ancoragem, mas o abandono e a partida", quer dizer o caminho, com o filósofo -cito Cavell mais uma vez- como andarilho do pensamento; Emerson fundador de "Uma Nova América, Ainda Inabordável", explorador de um Oeste do pensamento que logo será recoberto pelas brumas analíticas dos profissionais do senso comum...
É, assim, retornando a Emerson, que se poderá associar a Inglaterra à Alemanha, como se esses caminhos jamais se tivessem separado, num ciclo cotidiano que será aquele de uma filosofia da vida onde "o pleno meio-dia será minha Inglaterra dos sentidos e do entendimento; a noite será minha Alemanha da filosofia mística e dos sonhos", onde se poderá fazer da soma de seus dias um "dia de festa", já que "tudo o que conheço é recepção" (Emerson, "Experience") e que "a primeira sabedoria (é) a intuição" (Emerson, "Self-reliance"). Quanto a inscrever a lição de independência de Cavell nessa hipotética trilha pós-analítica que só se reconhece num "estilo", seja naquele de uma argumentação clara e distinta que o definiria exclusivamente, seja no de uma conversação cultural generalizada ("pós-filosófica") à maneira de Rorty, sua obscuridade deveria logicamente dissuadir-nos, essa obscuridade tantas vezes denunciada quantas assumida, dessa escrita do "combate de linguagem contra si mesma". (...)
Numa palavra, como diz Lyotard, se tradição há, é a tradição do inaugurar. Acrescentaria de minha parte, retomando a pergunta de Cavell -"quantos candidatos há, numa geração, ao papel de representar a filosofia no presente?" ("Esta América Nova, Ainda Inabordável"), que se trata de inaugurar filosoficamente além-Atlântico algo da ordem do contemporâneo, numa autonomia que é "aversão da conformidade" ("Self-reliance").

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