São Paulo, segunda-feira, 13 de outubro de 1997
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A diplomacia altiva

LUÍS NASSIF

No clima que se forma em torno da visita do presidente americano ao Brasil, é necessário clareza sobre a postura diplomática brasileira nas relações bilaterais.
Em geral, nas negociações com os Estados Unidos, há duas espécies de reação, ambas fruto do complexo de inferioridade histórico do Brasil. Uma em torno da máxima "o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil". Outra, exorcizando o demônio e fechando as portas a qualquer forma de negociação, como se fosse impossível a um país soberano obter vantagens em negociações bilaterais com uma potência mais forte.
Subserviência e vitupério
Entre a diplomacia da subserviência e a do vitupério, há espaço para a atuação diplomática altiva, desde que se tenha claro o interesse nacional.
A prova foram as negociações conduzidas em 1952 pelo então embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Walther Moreira Salles, cujos principais detalhes narro a seguir:
Moreira Salles seguiu para Washington com uma pauta de pendências, das quais a mais urgente era obter um empréstimo que permitisse recompor as reservas cambiais brasileiras. As importações brasileiras estavam a ponto de ser interrompidas.
Limite de 20% por ano
A postura do governo americano começara a mudar depois que Getúlio Vargas decidiu alterar a Lei de Remessa de Lucros. E, no entanto, as mudanças eram francamente legítimas, conforme entendia o próprio Moreira Salles, ele mesmo um banqueiro.
A lei 9.025, sobre remessa de lucros, era de 27 de fevereiro de 1946. Por ela, as remessas anuais de lucros, juros e dividendos ficariam limitadas a 8% do capital registrado, e as repatriações de capital deveriam obedecer ao limite de 20% por ano.
O estratagema adotado por muitas empresas estrangeiras consistia em entrar no Brasil com determinado capital, depois levantar empréstimos em bancos nacionais e estrangeiros. Engordava-se o capital artificialmente aumentando a base para a remessa de lucro.
Coibir exageros
Em 3 de janeiro de 1952, Vargas emitiu o decreto número 30.363 que impunha um limite de 10% sobre o capital efetivamente entrado e registrado, sem se computar os lucros reinvestidos. As mudanças visavam coibir exageros, já que, entre 1947 e 1951, o ingresso de capitais foi em média de US$ 15 milhões por ano, contra remessas de lucros da ordem de US$ 47 milhões.
Sem contabilização
Em Washington, a complexidade do trabalho do embaixador Moreira Salles já se iniciava no próprio processo de contabilização da dívida brasileira.
Devedor direto
Como o sistema financeiro internacional ainda não dispunha de esquemas de compensação, o Brasil era devedor direto do comércio e da indústria dos Estados Unidos, que dispunham de uma capacidade infernal de produzir alarido. Os credores reuniam-se em comitês em várias cidades americanas várias vezes por semana, com manifestações e passeatas contra o Brasil.
Credenciais de embaixador
As credenciais de embaixador foram apresentadas em junho de 1952. Ao final de setembro, Moreira Salles já tinha obtido o assentimento do secretário de Estado Dean G. Acheson e do secretário do Tesouro John Walther Snyder para o empréstimo de mais de US$ 300 milhões, que ajudaria a liquidar os atrasados comerciais.
Missão diplomática
Pouco depois, o poderoso Acheson -figura central do plano Marshall de reconstrução da Europa- veio ao Brasil em missão diplomática, ficando hospedado na casa de Moreira Salles.
Entram os republicanos
Quando parecia tudo acertado, transcorreram as eleições presidenciais, e um herói de guerra, o candidato republicano Dwight Eisenhower, arrebatou dos democratas um poder que eles conservavam desde 1930, quando Roosevelt consagrava o New Deal.
Mudança nos escalões
A base do programa republicano não era encorajadora. Um dos itens principais é que nenhum país aumentaria sua dívida com os EUA. Além disso, a troca de governo provocou uma mudança radical em praticamente todos os escalões do governo, impedindo que, entre novembro e janeiro, se desse seguimento aos termos do acordo verbal.
Empossado Eisenhower, o cargo de secretário de Estado passou das mãos de Acheson para as não menos ilustres de John Foster Dulles, advogado consagrado e intelectual de peso.
Encontro tormentoso
O encontro com Moreira Salles foi bastante tormentoso. O embaixador não conseguia esconder a urgência.
As importações brasileiras estavam praticamente paralisadas por falta de crédito comercial. Mas Dulles parecia irredutível:
- A importância que os senhores solicitaram é muito alta, e o Brasil não tem capacidade para pagá-la, disse Dulles.
- Desculpe-me, mas as negociações já duram meses e foram exaustivamente discutidas entre o Departamento Econômico da Embaixada e o secretário do Tesouro americano, rebateu o embaixador. Ambos chegaram a um acordo não só sobre as condições do empréstimo como concordaram com a capacidade de pagamento do Brasil.
Dulles não abria a guarda:
- Eu consultei o secretário Humphrey, do Tesouro, e ele me disse que não concordaria com mais de US$ 100 milhões.
De fato, o secretário de Tesouro George M. Humphrey havia assumido a política econômica de Eisenhower com mão de ferro.
- Mas nós já tínhamos conversações anteriores para liquidar dívidas comerciais no valor de mais de US$ 300 milhões...
- Não se esqueça, sr. embaixador, os republicanos é que estão no controle agora. Não somos como os democratas. Não compramos amizades.
- E a amizade do Brasil não está à venda, rebateu o embaixador.
- O senhor é banqueiro na vida privada e sabe que o Brasil não pode pagar.
Dulles havia batido forte demais, e a conversa azedou:
- Secretário Dulles, aqui eu não sou banqueiro, eu sou embaixador. E o senhor não é o advogado-chefe do maior escritório de Wall Street (Dulles era advogado da Sullivan & Crowell). O senhor é secretário de Estado.
Não deu espaço para Dulles retrucar:
- O senhor escreveu um livro em que reprovava a pouca atenção dos EUA para com a América Latina. Eu, como representante do maior país da região, e primeiro embaixador que o senhor recebe, saio decepcionado. E como não temos mais nada a dizer, peço licença.
Levantou-se para sair. Dulles antecipou-se, bateu no seu ombro e procurou acalmá-lo:
- Você é muito jovem, impetuoso, vamos conversar.
- Desculpe, mas não temos mais o que conversar.
Aí o duro Dulles fez menção de abrir a guarda:
- O senhor Acheson estava a par das negociações?
- Sim, foi ele quem me incentivou.
- Mas esse compromisso é do Partido Democrata, que dava dinheiro com liberalidade. Nós somos diferentes.
- Eu pensei que estivesse conversando com o governo dos Estados Unidos.
Na saída, Dulles perguntou se Acheson tinha se comprometido com o embaixador.
- Tinha.
Era sexta-feira. Ao chegar à embaixada, fim de expediente, Moreira Salles passou telegrama a João Neves, falando das dificuldades. Veio a contra-ordem: "Rompa negociações".
Virando a mesa
Poucas horas depois, a atitude altiva do jovem embaixador surtiu efeito. Como Dulles não podia resolver sozinho a questão, pois George Humphrey era contra, levou o assunto ao próprio Eisenhower.
O presidente convocou então o secretário do Tesouro, o presidente do Federal Reserve Bank, Dulles e o presidente em exercício do Eximbank, Hawthorne Arey para uma nova reunião com o embaixador brasileiro.
Horas depois, o empréstimo estava aprovado.

Email: lnassif@uol.com.br

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