São Paulo, segunda-feira, 13 de outubro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Sem meio, fim e começo, navegar é preciso

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

O quê, como, onde, quando e por quê? Antigamente éramos educados a escrever assim uma história para jornal. Outra regra de ouro era alinhar os fatos de tal maneira que o mais importante vinha em cima e, em seguida, vinham os detalhes até o menos importante, que fechava a matéria. Pirâmide invertida -usava-se essa forma para simbolizar a estrutura da história.
Essa visão linear de uma história foi para os ares com a informática e, sobretudo, com os recursos da Internet. Não se espera mais que o leitor siga o fio da meada do princípio ao fim. Ele interrompe a leitura, desloca-se para outro tema, volta novamente, ou do outro tópico dá um novo salto para um oceano de possibilidades.
Não se quebrou apenas a unidade de espaço. A do tempo também foi pelos ares. O leitor pode muito bem voltar atrás na história, investigar os antecedentes de um evento, embarcar numa outra época.
Como fica o contador de histórias, nesse novo mundo? Talvez tenha de se preocupar também em organizar o roteiro para que seu leitor navegue livremente e tire o melhor proveito de tudo o que há sobre o tema. Com alguma humildade é preciso até reconhecer que um bom leitor acabará muito mais do que nós sobre o objeto que estamos lhe propondo.
Essa viagem de Clinton, por exemplo. Nos jornais lemos que os moradores de um hotel em Brasília ganharam uma semana de viagem para deixar vago o andar onde a comitiva vai se hospedar. Mas no universo não-linear, a viagem de Clinton poderia dar um bom roteiro para o leitor interessado na relação dos dois países.
A biografia estaria ao alcance dos dedos, assim como uma investida nas personalidades dos ex-presidentes norte-americanos, filmes sobre eles e uma tonelada de livros.
Um desses livros poderia ser "Locked in the Cabinet", do ex-conselheiro econômico de Clinton Robert Reich, que foi ministro do Trabalho. Ele conta como são as reuniões inúteis do conselho de ministros e como se entediou fechado num gabinete, até que reencontrou a liberdade.
Parece que mais do que "Cores Primárias", um inventário de escândalos de campanha, o livro de Reich se concentra no sonho perdido, na decidida guinada à direita, deixando para trás promessas importantes, como a redução da brecha entre os salários nos EUA.
Tantas possibilidades ao alcance dos dedos significam também uma revolução na própria missão do repórter. Além das notícias de primeira mão que vai buscar na realidade cotidiana, ele passa a ser um navegador que prepara mapas para seus leitores.
Um tipo de descobridor, como Colombo e Cabral, que faz a primeira viagem, muitas vezes sem entender bem onde chegou ou onde poderia chegar. No entanto, quem se arrisca depois deles vai ultrapassá-los e conhecer novos caminhos.
Quando o cinema se firmou e o peso da imagem, sentimos que o texto clássico estava em mutação. Ele sugeria mais que descrevia, movia-se em cortes bruscos. O estilo carretel de John dos Passos, retomado mais tarde por Sartre, na trilogia "Caminhos da Liberdade", já era, no meu entender, uma espécie de rendição à realidade do cinema.
O que estamos vivendo agora é mais profundo ainda. Saber que o leitor não vai percorrer o texto de ponta a ponta, que pode se jogar do barco em qualquer palavra grifada, que, por sua vez, o levará para outros rumos imprevistos.
Mas, se a leitura já estava se aproximando do olhar que vê um filme, ela continua vendo o filme, mas agora dotada de um poderoso controle remoto, saltando como um cabrito montanha abaixo.
Quando escrevi minha primeira reportagem numa máquina Remington, não imaginava que nosso mundo linear explodiria com os anos.
Confesso que não vou sentar à beira do rio para meditar. Na verdade, posso até fazer isso, mas estarei pensando num jeito de mergulhar.
Pesquisar esse novo estilo, formar de novo jornalistas como nos tempos do quem, como, onde, quando e por quê, poderia ser um bom programa de trabalho. Já não mais o cheiro de chumbo nas linotipos, nem se ouve o matracar das velhas máquinas portáteis. Estamos numa encruzilhada e hoje ainda não é sexta-feira.

Texto Anterior: Johannesburgo abre hoje sua 2ª bienal
Próximo Texto: Paulo Coelho leva 'Monte Cinco' a 47 países
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.