São Paulo, segunda-feira, 13 de outubro de 1997
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Músico esquece passado transgressor

CARLOS CALADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quem foi ao Free Jazz, já na madrugada de domingo, esperando ouvir uma das figuras míticas do jazz de vanguarda dos anos 60, saiu do Bourbon Street pelo menos um pouco frustrado.
Como se tivesse esquecido totalmente seu passado de iconoclastia, o saxofonista norte-americano Pharoah Sanders tocou durante uma hora e meia, com uma sobriedade musical digna de um garoto da geração Marsalis.
Não que Sanders tenha tentado esconder sua ligação com o mestre John Coltrane (1926-1967), que acompanhou por dois anos, durante sua fase "free" -a mais transgressiva e atonal.
Ao contrário, Sanders já abriu o show com a histórica "Giant Steps". Conhecida por seus acordes vertiginosos, que mudam junto com as notas da melodia, essa composição coltraneana virou prova de fogo para qualquer solista, desde os anos 60.
Contido ao extremo, o saxofonista não só tocou o tema com todas suas notas exatas, fielmente, como evitou qualquer licenciosidade harmônico-melódica no solo. Mais comportado impossível.
A antiga balada "Nightingale Sang in Berkley Square", segundo número do concerto, ganhou uma versão também puramente coltraneana, como se o mestre tivesse encarnado no discípulo.
Não bastasse a sonoridade semelhante à de Coltrane, Sanders decalcou até mesmo o fraseado do antigo parceiro, numa versão que poderia facilmente fazer parte do clássico álbum "Ballads", que Coltrane gravou em 1962.
Com uma hora de concerto, um certo constrangimento já começava a se espalhar entre os fãs mais antigos de Sanders. O ritmo afro-pop de "High Life" sinalizou que a possibilidade de algum número mais free era mínima.
Dançando como um feiticeiro africano, com sua berrante bata verde, Sanders conquistou boa parte da platéia. Os mauricinhos que escolheram sábado para ouvir jazz adoraram os corinhos de "yeah, yeah, yeah", puxados pelo saxofonista, entre sorrisos.
A última esperança de um mínimo de transgressão musical ruiu no bis. Nem mesmo na modal "The Creator Has a Master Plan", bem típica da fase mais mística de Coltrane, Sanders se animou a sair do tom burocrático.
Acompanhado pelos talentosos Santi Debriano (baixo) e Tani Tabbal (bateria), o saxofonista fez, no máximo, um show ok. Quem conhece bem seu passado, sabe que apenas uma pálida sombra de Pharoah Sanders esteve no Free Jazz.

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