São Paulo, segunda-feira, 13 de outubro de 1997
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Canudos, messianismo e política

MARCO MACIEL

Avaliar o Brasil, repensar o processo histórico e fazer uma reflexão sobre a nossa evolução política, econômico-social e cultural é uma tarefa desafiadora neste fim de século e no advento do milênio que se aproxima.
Por isso, as manifestações em torno do centenário de Canudos podem ser entendidas como uma oportunidade ímpar para a recuperação do espírito crítico da sociedade brasileira, por intermédio da discussão do nosso passado ou, como escreveu Tavares Bastos, das "esperanças do futuro".
Concordo com Monteiro Lobato quando cunhou a significativa frase de que "uma nação se faz com homens e livros", mas também entendo que a capacidade crítica e de análise faz parte desse patrimônio da humanidade que é a consciência histórica de cada geração.
O homem não é só o homem, mas, como dizia Ortega y Gasset, é também sua circunstância. E, quando mudam as circunstâncias, mudamos com elas.
Não examino aqui o homem Antônio Vicente Mendes Maciel e suas circunstâncias. Até porque não é o Antônio Conselheiro que está em questão, mas o movimento que ele desencadeou.
Atenho-me, por isso, apenas às circunstâncias. O messianismo do sertão brasileiro, que criou as condições para o surgimento dos beatos e dos conselheiros, está presente em toda a nossa vida, em diferentes versões. O padre Cícero é outro marco cronológico importante pela data de sua morte, 1930, que coincide com o fim da República Velha.
Não sei se posso atribuir intuitos monarquistas ao movimento de Canudos. Suponho que pelo menos essa não tenha sido a motivação nem a circunstância do surgimento do messianismo, comum à Monarquia e à República.
Mas é inquestionável na República -e provável na Monarquia- que tanto a atuação do padre Cícero quanto a de Antônio Conselheiro terminaram adquirindo forte e incontestável motivação política.
No caso do padre Cícero, todos sabem de seu envolvimento político, de que Floro Bartolomeu é figura central, ainda que de influência tão pouco estudada em nossa historiografia.
No caso do Conselheiro também, na medida em que, motivado ou não, terminou representando o movimento de contestação do poder republicano mais ostensivo e evidente, já que as insurreições políticas urbanas não adquiriram ou não assumiram conotações monárquicas a não ser em breves e fugazes momentos, sem relevância histórica.
Morto o Conselheiro, viveu a República. Morto o padre Cícero, com ele morreu a República Velha. O fim deles marcou o início de fases decisivas do processo político brasileiro.
O que desejo salientar é que, como político, não deixo de valorizar todas as circunstâncias de que resultou o messianismo religioso.
Da mesma forma, é também como político que deduzo a íntima associação entre o messianismo religioso e duas etapas decisivas do fim do messianismo político, o início da República e o fim de uma velha República.
Não posso deixar de reconhecer que o fenômeno não me impressiona e, mais do que isso, me faz entendê-lo e compreender as suas circunstâncias. Não hesitaria em dizer que, sem superar o episódio de Canudos, a República não se teria consolidado no momento em que o fez e com as características pelas quais se realizou essa consolidação.
Sei, porém, que essa é apenas uma das vertentes de análise do movimento de Antônio Conselheiro, que deve ser discutido, no seu centenário, em todas as suas implicações que interessam ao processo de avaliação histórica.

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