São Paulo, quinta-feira, 16 de outubro de 1997
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Marlui Miranda grava missa para índios

CARLOS BOZZO JUNIOR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há mais de 20 anos que Marlui Miranda pesquisa, arranja, canta e desenvolve um trabalho único no mundo, com músicas indígenas do Brasil.
A meta desse sólido trabalho é uma caixa com seis CDs. O primeiro, lançado em 1995, chama-se "IHU-Todos os Sons" e já recebeu dois prêmios no exterior.
O segundo, "2 IHU-Kewere: Rezar", foi apresentado em junho deste ano no Sesc Pompéia e na catedral da Sé, na época da celebração da missa em comemoração dos 400 anos da morte do padre Anchieta, e sai em CD agora, em lançamento da Pau Brasil.
O CD, que conta com a participação de 179 pessoas, entre membros da Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo, do Coral Sinfônico do Estado de São Paulo, do Coral IHU e de equipes técnicas, é considerado uma obra de bravura nestes dias em que impera o minimalismo na indústria fonográfica.
Marlui recebeu a reportagem da Folha em sua casa, num condomínio fechado no Embu, ladeada de bichos -"tenho alguns amigos índios que disseram haver onça por aqui. Nunca vi nada além de esquilos, tucanos e antas, mas eles conhecem a onça pela pegada...". Leia a seguir trechos da entrevista.
*
Folha - Em 1978, você deu início a pesquisas que tinham como foco as falas e os cantares indígenas. O que a levou a isso?
Marlui Miranda - Comecei antes de 1978. Eu já conhecia música indígena por meio de gravações de alguns antropólogos. Sempre gostei muito da música deles. Mas sempre a ouvia recriada, arranjada. Existem 280 grupos étnicos no Brasil. É como se fossem 280 países, cada um com seu estilo e seu repertório. Nada foi feito com essa riqueza musical.
Então, decidi fazer um trabalho com essa música maravilhosa. Sempre levei em conta a demora de realização desse trabalho, porque é um repertório muito grande, mas estou muito disposta a fazê-lo.
Folha - O que você viu nessas idas e vindas à Amazônia?
Miranda - Eu vi coisas históricas. A história aqui no Brasil acontece há dez minutos. No Brasil, ainda existe espaço para coisas incríveis acontecerem.
Eu vi uma região inteira surgir do nada. Meu objetivo sempre foi aprender música indígena. Hoje, eu tenho um repertório de aproximadamente 200 horas de fitas.
Folha - O que os índios escutam?
Miranda - Eles escutam... Amado Batista (risos).
Folha - Como foi o processo de ir a campo para captar a música indígena?
Miranda - Foi engraçado. Quando fui para Rondônia pela primeira vez, havia um conflito entre índios e colonos muito grande, com mortes. Tive de passar pelo meio disso.
O carro em que eu estava ficou preso entre aquelas árvores imensas que existem na Amazônia e comecei a cantar bem alto uma música, até que os índios apareceram e nos ajudaram.
Quando cheguei à aldeia dos suruís, não sei como, todos sabiam que eu cantava, e tive de cantar umas mil vezes. Só depois de seis anos descobri o que significava a música que cantei. Eu pedia para eles "me dá facão, me dá espelho...".
Talvez eles acharam que eu fosse índia, porque, apesar de não saber o que eu estava cantando, minha pronúncia é muito boa.
Folha - O que se pode aprender com a música indígena?
Miranda - Você pode perceber, por exemplo, certos movimentos de migração em certas manifestações musicais.
Os suruís têm uma forma musical muito semelhante, ou até mesmo igual, à música oriental budista, com aqueles glissandos (passagem ascendente ou descendente sobre uma série de notas consecutivas) típicos.
Folha - Existem improvisos nesses cantos?
Miranda - Em uma determinada categoria de música, os índios improvisam. Eles cantam sobre notas que variam, coisas do cotidiano. "Eu hoje fui caçar, encontrei uma anta e matei" (cantando)... É um relato do que aconteceu no dia, por meio da música.
Folha - Um repente?
Miranda - É, pode se chamar assim.
Folha - Como os índios compõem?
Miranda - Os xavantes, por exemplo, o fazem quando sonham com a música ou com um nome. Eles fazem um jejum e não comem comida de branco para poderem sonhar. Depois que o índio recebe a música de um espírito ou antepassado no sonho, ele guarda para ele, pois há o perigo de ela ser roubada. Por fim, ele programa um encontro com um conselho e apresenta a música a todos.
Folha - Como essa música é qualificada de boa ou ruim?
Miranda - Pelo sucesso que ela ocasiona. Se é boa, vira um hit na aldeia. E tem músicas que são transacionadas. Você pode trocar sua música por um facão, um rádio, mas aí ela deixa de ser sua.
Folha - Fale um pouco do projeto de seis CDs.
Miranda - Já tenho muito material, mas a quantidade ainda existente é infindável. Serão seis CDs com naturezas diversas. Cada um tem sua particularidade determinada pela própria estrutura da música. O primeiro CD é um grupo coral e cênico. O segundo, a missa. O próximo também será diferente...
Folha - Como será o próximo?
Miranda - O próximo eu não vou dizer (risos)... Vou dar uma dica. Todos os CDs são baseados nos sentidos. No final do projeto se perceberá, por meio dos seis CDs, a maneira como os índios ouvem e entendem o som e a música.
Folha - Você já tem data marcada para iniciar o terceiro CD, ou mesmo o nome dele?
Miranda - Data ainda não, mas o nome será "3 IHU Anup: Ouvir". A palavra Anup significa ouvir. IHU, todos os sons, genérica.
Folha - Qual sua proposta: documentar, popularizar, preservar ou apenas cantar a música indígena brasileira?
Miranda - Acho que isso tudo. Eu não tenho a pretensão de popularizar. Não existe um veículo de massa que seja capaz disso. Mas essa música não é hermética. Ela tem um alcance incrível.
Em todos os países em que fui apresentá-la, foi aceita de uma maneira muito boa. Meu trabalho não é acadêmico. Tenho como objetivos ter o prazer de interpretar a música e levar ao nosso conhecimento que alguma parte de nós está nessa música.
Folha - Você paga alguma espécie de direito autoral para esses povos?
Miranda - Sempre pago aos índios ou a instituições confiáveis que são associadas a eles. Uma parte dessa verba vai para o autor, e a outra, para projetos da comunidade.
Folha - É fácil ensinar um coral a cantar em tupi?
Miranda - As pessoas do coral são muito competentes. Elas estão acostumadas a cantar em qualquer língua: alemão, francês, inglês... Cantar em tupi é mais fácil do que cantar em outra língua.
Folha - Quantas pessoas participaram do seu CD mais recente?
Miranda - No CD, são 179 pessoas, mas, se contar todo mundo que participou mesmo, chega-se a um número de 200, talvez 250 pessoas.
Folha - Esse número grande de pessoas não inviabiliza seus show?
Miranda - Sim e não, porque tenho uma partitura que posso por embaixo do braço e, assim, executar a peça com outras orquestras e outros corais.
Folha - Pode-se qualificar seu trabalho de "etno-pop"?
Miranda - Sim.
Folha - Você participou de uma gravação de um disco de Gilberto Gil, em Oslo, na Noruega. Como é esse disco?
Miranda - Ele participou do meu primeiro CD, adorou e me chamou para participar desse disco, "Gil e Convidados", que deve ser lançado pela gravadora Pau Brasil em breve. É um trabalho lindo, que mostra o Gil sempre com o pé no futuro.
Folha - Você gravaria um jingle?
Miranda - Tranquilamente. Já fiz música para o "Sítio do Pica-Pau Amarelo", para a novela "Espelho Mágico"... Até em casamento já toquei (risos)... Não tenho restrição a essas coisas.
Folha - Qual é a previsão para a conclusão da sua caixa de CDs?
Miranda - Daqui a uns seis anos acho que já terei os seis CDs prontos. Sou paciente.

Gravadora Pau Brasil: tels. 011/814-9404 e 011/870-2777; e-mail: paubrmus@uol.com.br

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