São Paulo, sexta-feira, 17 de outubro de 1997 |
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Dualidade dá o tom em filme de Oliveira
INÁCIO ARAUJO
Neste último, de início Manoel é o velho mestre que leva sua equipe a uma viagem sentimental por lugares de sua infância. Bem mais adiante, o eixo desloca-se e percebemos que o importante não é o trajeto de Manoel, e sim o de Afonso, seu ator francês. Uma hesitação do filme? Uma hesitação da realidade, escreveu um crítico. O fato é que a história de Afonso se impõe, quando a de Manoel já parece esgotada. Eis a história de Afonso: ele é francês, filho de um português que emigrou na adolescência. Afonso só conhece o vilarejo de sua família pelas narrativas do pai, morto há vários anos. Seu desejo é poder conhecer e conversar com a tia, de quem apenas ouvira falar. (Quem quiser preservar-se para o final de "Viagem ao Princípio do Mundo" deve pular umas tantas linhas: é impossível falar deste filme sem contar seu final. Em todo caso, não tem a mínima importância saber o fim da história: as imagens é que contam.) O contato entre Afonso e a tia é difícil -pontuado pelo fato de Afonso não falar português- e, por isso mesmo, mais comovente. Soberbo, como cinema. O importante, porém, é o rebatimento final -mais espantoso do que surpreendente. Afonso prepara-se para assumir seu papel no filme de Manoel. Na maquiagem, pode então transformar-se: em vez do rosto francês, que víramos até ali, surge um outro rosto, perfeitamente português, como se um outro homem estivesse escondido em Afonso. Ora, tudo nesta viagem é dual. Há dois filmes. No filme que se vê, há também duas histórias, a de Manoel e a de Afonso. Há duas línguas: o português e o francês. E também as histórias são contadas duas vezes (pois é preciso traduzir os diálogos, continuamente, de um idioma para outro). O espectador impaciente não tem por que entrar no cinema. Oliveira, como sempre, não tem a menor pressa. Seu cinema é para quem gosta de se deixar embeber pelas imagens, pela deliciosa sonoridade das vozes. É para quem aceita errar por Portugal, aparentemente sem destino, deixando-se conduzir numa perua, por paisagens magníficas, sem saber exatamente qual o sentido de tudo aquilo. Porque neste filme -e talvez isso seja um defeito, talvez não- nem tudo chega a fazer sentido. Viajamos pelo caos de uma existência, a do diretor de cinema, por suas lembranças recolhidas como que ao acaso, como uma reflexão sobre a velhice e a morte. Nunca saberemos o sentido delas (talvez sejam o fundamento do filme que se vai realizar). Ao mesmo tempo, acompanhamos a odisséia de Afonso, sua viagem em busca do sentido da própria existência, por lugares com que parece ter sonhado sempre, sem nunca ter conhecido. A única certeza é que Manoel de Oliveira faz mais um filme de mestre, entre passado e presente, infância e velhice, vida, morte, imaginação, sentimentos guardados na alma. Enfim, "Viagem ao Princípio do Mundo" é uma aventura perigosa, delicada, melancólica, onde a beleza absurda das imagens parece existir na proporção da fragilidade desses seres que tomam conta da tela para, simplesmente, viverem. Texto Anterior: Rita Lee volta "santa" para lançar disco Próximo Texto: 'Junk Mail' é irmãos Coen norueguês Índice |
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