São Paulo, sexta-feira, 17 de outubro de 1997
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Eastwood questiona poder do absoluto

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Às vezes, o espectador se pergunta, durante a projeção deste filme, a qual "Poder Absoluto" Clint Eastwood se refere.
Seria o do presidente dos EUA? Do ponto de vista político, isso seria um óbvio contra-senso: pode-se pensar o que quiser dos EUA, menos que não sejam um país em que o poder é repartido de maneira sensata.
Talvez seja o poder de que dispõe o presidente (Gene Hackman), no momento em que seus jogos de amor violento com uma mulher são interrompidos pelos tiros dos seguranças (que matam a moça).
Mas nem esse poder de vida e morte é tão absoluto assim.
O presidente que vemos -por meio de um espelho de uma face, guiados pelo olhar do ladrão Whitney (Eastwood)- não é um poderoso. Ao contrário, ele é pilhado na intimidade (portanto, na fraqueza) e, pior, acaba de se envolver em algo que, se vier a público, fatalmente o destruirá.
O que seria então esse poder? O de apagar as pistas que revelam sua presença no local? O de, em seguida, dar uma entrevista coletiva na TV, compungido, em companhia de seu melhor amigo (aliás, o marido da mulher com quem estava transando), prometendo que fará tudo para encontrar o criminoso?
Vamos um pouco para trás. Whitney assiste à cena de amor e, depois, de assassinato porque estava roubando uma casa. Quando ouve o ruído de pessoas se aproximando, ele se esconde num armário, atrás do espelho de uma face.
Whitney consegue fugir com o produto do roubo -uma fortuna- e planeja deixar o país, quando vê por acaso a entrevista na televisão. Diante daquela manifestação de hipocrisia presidencial, Whitney/Eastwood muda de idéia e decide combatê-lo.
É o que fará, no mais, ao longo desse thriller de suspense notoriamente hitchcockiano. Como bom ladrão de casaca, uma espécie de Arsène Lupin moderno, Whitney colocará sua incrível capacidade de observação a serviço do desvendamento do crime.
Nesse sentido, pode-se pensar que o poder absoluto a que o título se refere não é o do presidente, nem da TV, nem da CIA, nem do FBI etc.
O poder absoluto seria, então, o do olhar. A capacidade de ver as coisas em plena liberdade, que Whitney/Eastwood postula como manifestação superior da espécie: algo que não se deixa subjugar pelos poderes terrenos, pelo imediato, mas se guia por valores.
Vistas assim, as coisas poderiam ser simples. Mas um ladrão, um cara que largou a família, que mal consegue se relacionar com a filha, parece mal colocado para levar adiante essa cruzada moral.
Passado permanente
É aqui que entra em cena uma instância frequente no cinema de Clint Eastwood: o passado.
Recentemente, vimos o ator em "Os Imperdoáveis" (a mulher morta servindo como inspiração de vida para o ex-bandoleiro) e em "As Pontes de Madison" (a mãe morta lega uma lição de vida e amor a seus filhos, por carta).
Dessa vez, sabemos que a mulher de Whitney também morreu há pouco, que viveram afastados em função da atividade dele. E, em vista disso, Whitney tem uma dívida com a filha. Esta, por sua vez, não quer ser ressarcida. No seu entender, o pai é um imperdoável.
Nesse sentido, o poder de que fala Eastwood é o da morte sobre a vida.
Não se trata de necrofilia, mas de afirmar o precário (o humano) como memória e permanência -o poder do absoluto.
Não é de estranhar que Eastwood busque inspiração em Hitchcock (o católico) e no suspense para falar a seus contemporâneos. Ou que evoque John Ford, reduzindo os poderosos a facínoras e elevando o obscuro ladrão a herói.
Nem é estranho que "Poder Absoluto" se apresente como um suspense cuja segunda face (oculta) é a de um faroeste.
Porque esse filme também poderia ser descrito como a epopéia do homem só que enfrenta uma cidade (Washington, no caso) dominada por bandoleiros, munido apenas de coragem e da certeza de ser o real detentor dos valores que criaram e justificam a América.
Resumindo, outra vez Eastwood surpreende e se supera.

Filme: Poder Absoluto
Produção: EUA, 1996
Direção: Clint Eastwood
Com: Clint Eastwood, Gene Hackman, Ed Harris, Laura Linney
Quando: a partir de hoje, nos cines Studio Alvorada 1, Jardim Sul 2, Gazeta e circuito

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