São Paulo, segunda-feira, 20 de outubro de 1997
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Como dizia Sartre, "o inferno são os outros"

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

O inferno são os outros, dizia Sartre. Uma revista francesa, "Magazine Littéraire", decidiu dedicar um número duplo às diferentes visões de inferno na religião e na arte.
O resultado dessa descida nos faz voltar revigorados, um pouco como na verdadeira visita ao inferno, de onde um simples mortal pode voltar como um pajé dotado de uma essência sobrenatural.
Segundo estudiosos como Jean Delumeau, a idéia do inferno foi mais difundida entre os séculos 14 e 16, período que corresponde ao nascimento da modernidade.
Já no balanço das religiões, o judaísmo é a única que consegue sobreviver sem um conceito de inferno, pois o seu Shéol é apenas um buraco, uma espécie de fossa onde caem todas as almas, independentemente de seus méritos terrenos.
Segundo a pesquisadora Catherine Clement, os irlandeses têm um sentido turístico desenvolvido, pois sua visão de inferno prevê uma folga de fim-de-semana. De fato, todos os suplícios são encerrados na sexta-feira à noite, os demônios tomam a forma de pássaros negros e voam para longe, voltando apenas na segunda de manhã, para retomarem seu trabalho.
Trabalho que, na concepção de alguns santos, só se interrompe no domingo, pois cada dia da semana tem um suplício já predeterminado. O de quinta-feira, por exemplo, é um abismo glacial.
Uma coisa parece tranquila para quem lê todas as visões de inferno. Elas se inspiraram na realidade e nenhuma suplanta, por exemplo, o campo de concentração de Auschwitz, definido por um oficial nazista como o cu do mundo.
O inferno mais próximo de nós, o inferno cristão, é dotado de uma categoria especial, surgida no século 13, o purgatório. Esse conceito de que algumas penas seriam purgativas, portanto transitórias, é o resultado de um longo debate com autoridades religiosas que pregavam penas infernais definitivas.
A afirmação de que apenas o judaísmo descarta o inferno precisa ser relativizada no caso do Tibet. Apesar das imagens de lagos de chamas pintadas nos templos, tudo indica que o inferno budista existe no ego -uma vez vencida sua influência, o budismo abre uma luz clara, sem punições.
É na literatura, entretanto, onde se queimam as castanhas. O inferno de Dante é, de todas as partes da "Divina Comédia", a mais conhecida. Ele tem uma ante-sala, nove círculos, baixo inferno, alto inferno, penas adequadas à arquitetura do lugar e a expressão "deixai toda a esperança...".
O inferno é desesperança, uma idéia mais forte do que apenas cheiro de urina e excrementos indicando uma regressão punitiva.
O diabo é que tão complexa elaboração estava sujeita também à dinâmica da história, e o inferno sofre um golpe com o Marquês de Sade, que o faz baixar à terra e o circunscreve às relações do carrasco e suas vítimas.
William Blake segue uma mesma trilha, reivindicando o inferno para o aqui e agora e propondo sua transfiguração pela poesia.
O capítulo dedicado aos alemães integra Goethe, Novalis e Thomas Mann na crença de que o homem não é condenado ao inferno pelo pecado original. Os três colocam o indivíduo como responsável pelas suas idéias e atos. Faltar a essas responsabilidades é abrir as portas do inferno.
Personagem real do século 16, o astrólogo Fausto, considerado pela igreja como um alquimista demoníaco, passa a ser uma importante inspiração para a literatura. Não só para a literatura alemã, mas também para a francesa: Flaubert escreveu a "Tentação de Santo Antonio" estimulado pela obra de Goethe, e, em 1883, Rimbaud concluía sua "Une Saison en Enfer", cujo título já é uma negação da eternidade do inferno.
O que mais impressiona na literatura é sua capacidade visionária, isto é, a de existir num tempo em que os homens, como dizia T.S. Elliot de Dante, ainda tinham visões. Primo Levi, quando chegou a Auschwitz, se lembrou do inferno de Dante, os dissidentes russos se lembraram das fantasias infernais de Dostoievski.
A peça "Huis Clos", de Sartre, com estréia em 27 de maio de 1944, foi um marco na história do inferno literário por causa da frase "o inferno são os outros", uma espécie de passaporte para se livrar de chatos que passam a vida julgando e censurando, embora o escritor tivesse querido dizer muito mais. Suas reflexões sobre o tema, segundo os críticos, aparecem melhor em "O Ser e o Nada", um texto filosófico.
A célebre frase talvez tenha ofuscado outras iluminações francesas sobre o inferno, especialmente as de George Bernanos, que passou parte de sua vida em Barbacena (Minas Gerais) -e sua passagem por aqui nunca foi objeto de grandes pesquisas.
Duas frases destacadas do texto de Bernanos pelo "Magazine Littéraire" poderiam ser o tema de um número inteiro da revista.
Bernanos não se limita a trazer o inferno para o aqui e agora, mas integra nele o tema da amizade: "Fala-se sempre do fogo do inferno, mas, amigos, ninguém jamais o viu. O inferno é o frio. Satã é o amigo que não fica nunca até o fim".
Mais tarde, Bernanos escreveu: "O grande objetivo do sr. Hitler não é, visivelmente, nos degradar aos olhos do mundo, mas aos nossos próprios olhos, nos desgostar a nós mesmos".
Interessante como essa frase de Bernanos converge para a de Sartre e, de uma certa forma, para a própria idéia budista de que o inferno mora no ego. Todas essas concepções podem ainda ser enriquecidas pela psicanálise, representada por Julian Green: "O inferno não é o outro, mas o outro obscuro que mora no fundo de si mesmo".
Num momento em que passam o papa e Clinton, essas reflexões sobre o inferno me fascinam. Impossível não pensar no dr. Fausto vendo os grandes políticos contemporâneos, nacionais e estrangeiros, muito menos esquecer o inferno provinciano suscitado por certos debates. Cito, mas não subscrevo, a frase de Julian Green: "O mundo é um naufrágio, navegamos no Titanic do nosso século".
Mesmo em Jean Genet, que escolheu o caminho maldito, há uma esperança, portanto, uma negação do inferno que pode ser sintetizada nessa tirada de Gide: "Desça ao fundo do poço, se você quer ver as estrelas".
Tudo indica que já descemos.

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