São Paulo, segunda-feira, 20 de outubro de 1997
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Langhoff defende o teatro do escândalo

SÉRGIO DE CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não fosse a estranha beleza do espetáculo "Île du Salut", o diretor teatral Matthias Langhoff passaria quase despercebido no "Rio Cena Contemporânea".
Langhoff é um dos mais importantes diretores teatrais da atualidade. Dentre aqueles que iniciaram seu trabalho a partir do contato com a obra do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956) é, quem sabe, o melhor.
Com 56 anos, nascido em Zurique (Suíça) e há dois anos naturalizado francês, parece realizar sua obra teatral de acordo com aquela idéia brechtiana de que devemos olhar o estrangeiro como se fosse conhecido e o homem conhecido como se fosse estrangeiro.
Não é à toa seu interesse atual pelo escritor Franz Kafka. "Île du Salut" é uma adaptação livre do conto "Na Colônia Penal", de um autor tcheco que escrevia em alemão. No centro do palco, em meio à luminosa cenografia de uma ilha tropical, a máquina da morte. Tudo é estranho e habitual, violento e grotesco.
*
Folha - Você é um diretor polêmico na França. Seus últimos espetáculos -como "Filoctetes" (94) e "Ricardo 3º" (95)- despertaram indignação pelo fato de utilizarem atores que não falavam bem o francês. Isso é deliberado?
Matthias Langhoff - O idioma francês é muito bonito, melódico, mas tende a ser prolixo e abstrato. Eu acredito que os estrangeiros que utilizam o francês tornam a língua muito mais cheia de vida, mais real, mais concreta. O pensamento estrangeiro é muito mais concreto.
Folha - Além disso, você confronta um padrão da cultura teatral francesa, o bem falar.
Langhoff - E eu trabalho no sentido de fazer parar esse bem falar. Na França, quando você é ator, você tem de perder todo o seu sotaque natural. É absolutamente proibido alguém falar de modo natural. E a variedade de sotaques no país é muito mais rica do que a dessa língua literária. Mas essa não é a principal resistência ao meu teatro.
Folha - E qual é?
Langhoff - É quanto ao fato de ele ser mais político e ter menos teoria e menos construções abstratas do que o normal da tradição francesa. Tudo isso gera confronto com o público.
Folha - Mas esse confronto não é uma matéria-prima do seu trabalho?
Langhoff - Com certeza. Eu falo de um teatro com a função de organizar o escândalo público, no sentido de um verdadeiro pensamento de resistência contra os hábitos existentes. O teatro me parece ser o lugar para organizar este escândalo.
Folha - Brecht voltou a Berlim depois do exílio, em 1949. Ele veio para uma montagem num teatro dirigido, curiosamente, pelo seu pai, o ator Wolfgang Langhoff. Você, apesar da pouca idade, tem lembranças desse período?
Langhoff - Eu me lembro muito bem. Talvez bem até demais. Foi a minha escola de vida mais forte. Tudo o que eu penso hoje está ligado a esse momento, depois da guerra. Digo isso sem nostalgia.
Tive que aprender sobre as relações entre as pessoas numa cidade destruída, numa atmosfera de enorme violência. Sempre ligado à necessidade de construir verdadeiramente um mundo novo. Com todas as contradições.
Folha - E quanto aos artistas da época?
Langhoff - Tenho lembranças bem precisas de gente como Brecht, Eisler. Gente que voltava para vir se fechar numa grandiosa utopia. Trabalhavam como loucos. Todas as noites estavam juntos discutindo como construir uma outra Alemanha.
Folha - Você, após ter deixado o Berliner Ensemble, na década de 60, só voltou em 92 para a "intendência coletiva" do grupo. Por que esse colegiado -com Heiner Müller, Peter Zadek e outros- não deu certo?
Langhoff - Para mim, não foi suportável encontrar o sistema teatral depois da reunificação. Pensei que Berlim fosse voltar a ser uma vila multicultural, mas era ilusão. A primeira reação depois da queda do muro foi: "nós somos alemães apenas entre nós". Fiquei triste de deixar Heiner Müller, meu amigo, mas eu já era estrangeiro demais. Não podia ficar ali.
Folha - Você chegou ao Brasil uma semana depois da passagem do Berliner Ensemble. O que pensa do trabalho atual do grupo?
Langhoff - Eu poderia dizer, com todo o respeito, que o Berliner está totalmente acabado. As pessoas que trabalham lá querem apenas fazer negócios no mundo do teatro.
Fizeram esse espetáculo com Heiner Müller -"Arturo Ui"- que mesmo tendo alguns problemas é muito forte, onde Müller mostra um possível modo de se ler Brecht.
Mas ele jamais pôs Brecht de lado. Ele continua com as idéias de Brecht. O Berliner de Brecht -com toda a sua força e até com sua fraqueza- era um teatro para o qual a idéia de transformação do mundo era verdadeira. Como uma pequena empresa capitalista, é ainda mais absurdo do que os outros.

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