São Paulo, segunda-feira, 20 de outubro de 1997
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Tabucchi explica sua 'porção portuguesa'

JOSÉ GERALDO COUTO
ENVIADO ESPECIAL A FRANKFURT

O italiano Antonio Tabucchi considerou uma generosidade "um tanto excessiva" o convite que os portugueses lhe fizeram para integrar a delegação de escritores do país à Feira do Livro de Frankfurt, em que Portugal é o país tema.
Tradutor de Fernando Pessoa e professor de literatura portuguesa em Siena, Tabucchi chegou a escrever um livro em português, "Réquiem".
O escritor aproveita sua presença em Frankfurt para divulgar a tradução alemã de seu livro mais recente, "A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro", que a Rocco lança em breve no Brasil. Ele falou à Folha num português perfeito, com forte acento lusitano.
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Folha - De onde vem essa sua ligação tão apaixonada com a cultura portuguesa?
Antonio Tabucchi - Principalmente de minha mulher, que é portuguesa. Meu primeiro interesse por Portugal veio da leitura de um poema de Fernando Pessoa, mas o que me fez cultivar esse interesse foi minha mulher, depois os amigos que fiz em Portugal. Através dos sentimentos é que passam os países.
Devo dizer, entretanto, que não gostaria de viver em Portugal. Lisboa é uma cidade muito incômoda, que chegou a ser moderna sem conseguir ser moderna. Tem um trânsito horroroso, é muito mal organizada. Portugal pertence mais à minha alma do que ao meu cotidiano. Prefiro morar em Florença, que é minha cidade.
Folha - A leitura de seus livros faz lembrar de imediato dois escritores: Pessoa, obviamente, e Borges. Pode falar sobre a influência deles sobre sua obra?
Tabucchi - Sobre influências, posso responder-lhe com Pessoa, que dizia: na literatura, influenciou-me sempre tudo. Citando o segundo, Borges, eu diria que a literatura não é como um trem que corre em superfície e, sim, no subterrâneo, que não se sabe aonde vai, nem o percurso, e de vez em quando chega à superfície.
Tenho influência de Pessoa e de Borges, claro, mas sinto sobre meus ombros todo o peso de uma cultura de 2000 anos de escritores, desde os clássicos gregos e latinos. São a minha tradição, quero ser uma continuação nessa história dos homens.
Folha - Em "Os Três Últimos Dias de Fernando Pessoa", o sr. tornou ficção o fim da vida de Pessoa e ao mesmo tempo tornou "reais" os seus heterônimos. Como o sr. interpreta esse fenômeno dos heterônimos de Pessoa? Seriam uma radicalização do que faz todo escritor, que é se desdobrar em outros seres?
Tabucchi - Sim, até quase de uma maneira demasiado ostensiva, patente. De maneira que me senti autorizado a pensar que o próprio Pessoa podia ser uma personagem de romance. Pois além de um grande autor, ele também foi um grande personagem da literatura. Por quê não pegá-lo sob esse ângulo?
Folha - O que o sr. achou, nesse sentido, do romance "O Ano da Morte de Ricardo Reis", de José Saramago?
Tabucchi - É interessante. Pode haver críticos que dizem que essas maneiras de escrever são literatura pós-moderna, ou metaliteratura. Isso não importa muito. Os livros têm de ser lidos sem etiquetas.
Folha - Três de seus livros foram levados ao cinema: "O Fio do Horizonte", "Noturno Indiano" e "Afirma Pereira". O que o sr. achou?
Tabucchi - "O Fio do Horizonte", do português Fernando Lopes, é muito interessante, muito particular. Pertence a ele, mais do que a mim, claro.
Agora, quando vou ver um filme tirado de um livro, seja meu ou de outro autor, não me preocupo em saber se o filme é fiel, se respeita a obra do autor. Vou ver como se fosse uma coisa independente. A linguagem do cinema só pertence ao cinema. Quando como uma pipoca, não pergunto se ela é fiel ao milho que a originou.
Folha - Quais de seus livros tiveram melhor acolhida internacional?
Tabucchi - Acho que foram sobretudo o "Noturno Indiano", traduzido em 22 línguas, e o "Afirma Pereira", traduzido em 25. Entendo mais o sucesso de "Pereira", que fala de um contexto histórico do século 20, da luta contra o fascismo etc.
O "Noturno Indiano", não. Imagine um viajante, um italiano, procurando um português, escrevendo sobre a Índia e no fundo confessando que não percebe nada daquele universo, e esse livro é traduzido para japonês, para turco. Não sei se isso faz sentido. Pode ser que isso tudo pertença ao pós-moderno (risos).
Folha - O que o sr. conhece da literatura brasileira?
Tabucchi - Conheço quase tudo, desde Pero Vaz de Caminha. De Gregório de Matos até os atuais, passando por Souzândrade, li quase tudo.
Nos meus cursos de literatura portuguesa em Siena, ensino também alguns brasileiros, sobretudo Machado de Assis, que é um fundamento de toda literatura ocidental moderna, Guimarães Rosa e Clarice Lispector.
Folha - Quais são seus projetos atuais?
Tabucchi - Estou a ler os outros autores. Estou a prestar atenção ao que se escreve e ao que se escreveu. Quero concluir com uma citação de Borges. Ele diz uma coisa talvez um pouco esnobística, mas sobre a qual é preciso refletir: "A leitura talvez seja mais importante do que a escrita, porque é mais abstrata".

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