São Paulo, segunda-feira, 20 de outubro de 1997
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"Soberano espiritual" do Brasil?

ROBERTO ROMANO

A recente visita do papa retomou o antigo problema da soberania estatal. No pensamento católico coexistem, sendo mobilizadas segundo os tempos e as ocasiões, doutrinas que mandam obedecer o governo civil e outras ordenando a luta contra os Estados alheios aos ditames éticos, econômicos, políticos da Santa Madre.
O pressuposto dos bispos e do Vaticano, raramente confessado nos choques com os poderes civis, está na tese de uma dupla soberania: a espiritual, da igreja, e a temporal, do Estado.
Essa noção vem de Roberto Bellarmino, luminar da Contra-Reforma. Nos seus escritos sobre o poder do sumo pontífice nas coisas temporais (1610), ele sustenta que, se o povo corre perigo, o papa tem o direito de intervir na administração dos Estados. Quando os governantes não se inclinam diante do papa, os dirigidos não mais lhes devem obediência.
Segundo Otto von Gierke, nas doutrinas de Bellarmino "a igreja foi vista como o 'sujeito' original e inato de uma autoridade soberana inerente, a qual, pela ordem de Deus, era monárquica no caráter e universal nos seus fins, investida imediatamente por Deus. Como o mais elevado dos dois poderes soberanos, a autoridade espiritual seria superior à política; a soberania política não era, realmente, soberania".
Esse é o sentido da "potestas indirecta" do papa. O quanto tem razão Gierke prova-o, ainda no século 20, a concordata entre o Vaticano e Mussolini, assim comentada pelo papa Pio 11: "Na concordata estão um diante do outro, senão dois Estados, certissimamente duas soberanias plenas, isto é, perfeitas, cada uma em sua ordem, ordem necessariamente determinada pelos respectivos fins, na qual quase não é preciso dizer que a dignidade objetiva dos fins determina não menos objetivamente e necessariamente a absoluta superioridade da igreja" (carta do sumo pontífice ao cardeal Gasparri, 1929).
Baseando-se no fantasma da "soberania espiritual", a igreja pressiona a sociedade e o Estado para impor seus valores. A fala do sumo pontífice no Brasil teve esse cunho. Ele esclareceu a ordem a ser obedecida por todos.
Como nenhum poder civil moderno dobra os joelhos diante da "potestas indirecta", a não ser por hipocrisia ou oportunismo, a igreja escolheu, desde o século 19, "negociar" a dominação com os Estados.
Consultemos a encíclica "Au Milieu", de Leão 13. Ali, o papa diz que é obrigação de todos os católicos aceitar o governo existente, desde que mantidos os direitos eclesiásticos.
A mesma encíclica foi citada por d. Eugenio Sales, durante a ditadura brasileira, contra a Pastoral da Terra: "Agrade-nos ou não", disse ele, "deve-se acatar o poder constituído de fato, que tenha garantias de permanecer, mesmo que ele em sua origem seja ilegítimo" ("A Voz do Pastor", 10/12/76).
Existe um conflito permanente na consciência política dos católicos: ela inquieta os governos porque está submetida a uma outra soberania, a espiritual, que se apraz em intervir nos assuntos seculares e políticos. Mas ela também preocupa as oposições porque sua democracia é pouco segura.
Nas festas ao "soberano espiritual" do Brasil, João Paulo 2º, foram excluídos os sem-terra. Os católicos que se dizem empenhados na luta pela justiça silenciaram, na sua maioria. Erro da política vaticana: os hierarcas rumam para a situação de "sem-fiéis".
Os milhões atraídos pela festa teológico-política não iludem quem analisa o cotidiano católico. Os templos estão vazios, mas os "soberanos espirituais" exigem uma reforma agrária atrelada à sua visão da família, um patriarcalismo rural e autoritário.
D. Eugenio Sales, que pregou a obediência aos ditadores, hoje afirma que "ninguém é obrigado a obedecer a essa lei" no caso das providências governamentais sobre o aborto, quando existir estupro.
O governador do Rio diz que o cardeal "deve ter confundido suas funções episcopais com as do chefe do Executivo estadual". Errado: aquela autoridade religiosa exige a soberania sobre as consciências, sem ônus político algum, no plano da responsabilidade civil.
Ninguém, com razão intocada, é favorável ao aborto. Discuti-lo com prudência torna-se um imperativo ético e religioso. Os argumentos de todas as correntes devem ser refletidos, com seriedade e respeito. Mas o tema está sendo usado como instrumento para impor à ordem laica a política do atual pontífice e de seus auxiliares.
Desse modo, a hierarquia comete suicídio: a sociedade urbana desconhece seus valores "eternos". Sem tentar convencer pelo diálogo, os pastores desejam impor, pelo mando de César, a sua verdade. Esse não foi o método de Paulo, o apóstolo das gentes.

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