São Paulo, quinta-feira, 23 de outubro de 1997
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"Uau!" Viva a cultura!

DAVID DREW ZINGG
EM SAMPA

"Arte é o que acontece quando os pintores param de olhar as mulheres e se convencem de que têm uma idéia melhor."
John Chiardi

Ultimamente tio Dave vem pensando muito sobre o lamentável cenário da arte aqui em São Paulo.
O problema, me parece, é que em nossa grande cidade não há pessoas suficientes que realmente AMAM a arte e o refinado. Afinal, se tivéssemos mais amantes da arte e da cultura em Sampa, talvez não sentíssemos necessidade de armar nossos carros como se fossem tanques do Exército.
Para amenizar essa perigosa falta local de cultura, resolvi lançar uma revista grande, colorida e cara para convencer as pessoas de que a arte constitui um elemento realmente fundamental de nossa existência cotidiana enquanto cidadãos.
Quem sabe talvez você já tenha visto minha revista nas bancas.
Após anos de reflexão, decidi dar à minha nova publicação cultural um nome capaz de transmitir tudo de instigante que as artes guardam para cada um de nós, esperando o momento de se manifestar: "Uau!"
O nome "Uau!" foi invenção de um amigo meu que foi um dos maiores criadores de revistas no Brasil. Ele costumava ocupar uma mesa de canto de um bar em Ipanema, onde inspecionava potenciais garotas de capa quando elas abriam caminho até a praia.
Sempre que uma carioca particularmente "artística" de biquíni passava a seu lado, meu amigo tinha essa palavra prontinha na ponta da língua.
How Now, Brown "Uau!"
"Uau", dizia ele enquanto a garota caminhava até a areia, "precisamos urgentemente lançar uma revista de cultura".
Outro pai espiritual da "Uau!" foi Paulo Francis. Durante anos, Paulo apreciou as artes na praia culturalmente enriquecida diante do estrategicamente localizado Rio Country Club.
Entre longas tragadas de uísque importado Old Parr, Paulo muitas vezes ajudava a discutir o projeto de lançamento de uma revista cultural como a "Uau!".
A "Uau!" é uma revista muito grande e muito colorida. É fácil saber que é artística porque sua capa tem um quadro muito grande de uma mulher muito grande.
Mulheres muito grandes são marca registrada inconfundível da cultura.
Lembra quando éramos criancinhas totalmente incultas e nossa professora nos levava à pinacoteca, uma vez por ano, para vermos milhares de metros quadrados de quadros de mulheres muito grandes, com pernas muito grandes, mais ou menos do tamanho de sofás, e vários outros traços e partes do corpo muito grandes e igualmente grotescos?
Na maioria dos quadros artísticos, essas mulheres enormes sempre são retratadas comendo frutas muito grandes.
Enormes mulheres nuas
A razão pela qual esse tema é tão comum nas belas artes brasileiras de anos atrás é que, há muitos anos, a cidade do Rio vivia aterrorizada por bandos de imensas mulheres nuas. Elas invadiam Copacabana e Ipanema, mastigando enormes bananas verdes, e ameaçavam tocar fogo no Country Club se seus retratos não fossem pintados de imediato.
Para mostrar que a pintura brasileira tem raízes profundas, escolhi uma dessas senhoras de grandes dimensões para ilustrar a capa da primeira edição da "Uau!".
Para servir de guia aos leitores burros, incultos e ignorantes de nossa edição inaugural, pedi ao editor da "Uau!" que não poupasse tempo, dinheiro ou espaço na revista para explicar exatamente como o leitor despreparado deve se lançar na tarefa difícil -não, assustadora- de decifrar essa inovadora e inusitada revista cultural.
Com sua modéstia típica, o editor criou um mapa que orienta o leitor nos caminhos dessa revista-guia à sedução cultural. À sua típica maneira experiente e despretensiosa, o editor-chefe intitulou sua introdução pura e simplesmente de "Para ler a 'Uau!"'
O editor sábio sempre deve presumir que seus leitores sejam cretinos totais e fico feliz em poder afirmar que o editor da "Uau!" não se esqueceu dessa máxima fundamental.
Em seu artigo inaugural, o editor orienta seu leitor culturalmente carente pelos caminhos das complexas regras da leitura do português.
O sábio editor também faz com que seja fácil para o leitor destreinado descobrir que a estrutura complexa utilizada em seu idioma materno normalmente procede de alto a baixo, desse modo simplificando o trabalho do leitor novato.
O editor conclui a complexa tarefa de desvelar as dificuldades de compreensão da estrutura da revista quando explica que "as páginas da 'Uau!' são numeradas em sequência crescente".
Tio Dave e os profissionais que compõem a equipe de jornalismo da "Uau!" querem se unir a você numa viagem enriquecedora por esse roteiro de prazeres para o espírito.
O editor intelectual da "Uau!" diz que Aristóteles pensava no desfrutar da cultura como o prazer supremo da vida -mas a verdade é que, quando disse isso, Aristóteles ainda não tinha estado ao lado de mulheres enormes comendo bananas.
Pura verdade
Essa é mais uma de minhas histórias verídicas, tipo "juro que não estou inventando nada".
Outro dia o velho gringo Dave ouviu no rádio que precisava se reinscrever junto à Polícia Federal. O programa deu um número de telefone de informações sobre o processo.
Bem, não sei como você fica nessa, mas eu, pessoalmente, adoto como norma evitar ao máximo o contato com órgãos do governo.
Não é nada pessoal, mas talvez seja a experiência claustrofóbica de ler "O Processo", de Kafka, que me mantém longe das sedes de grandes órgãos públicos, repletos de escrivões e "escrivetes".
O susto nº 1 aconteceu quando disquei o número da PF. Uma mocinha com voz melíflua me saudou com uma pergunta tentadora: "Polícia Federal, bom dia, em que posso ajudá-lo?" (tive visões passageiras de um jantar no Gero's na companhia de minha própria agente da PF).
O susto nº 2 se deu quando ela me informou que eu poderia marcar uma hora para ir à polícia, dentro de alguns dias, em dia e hora de minha própria escolha.
O susto nº 3 aconteceu quando ela me informou que a agência mais próxima da PF ficava num edifício de escritórios situado a poucos quarteirões de minha casa, no Paraíso.
E o resto foi uma sucessão contínua de sustos -uma recepcionista educada, seguida por um entrevistador igualmente cortês. Tudo isso (repito que não estou sofrendo de nenhuma alucinação) aliado à distração fornecida por duas TVs no alto que mostravam um clipe de Gilberto Gil na MTV.
A moral da história não ilumina muita coisa.
Sentimentos mistos de que pelo menos um órgão público brasileiro finalmente está aprendendo como deve tratar o público.
E algumas reflexões sobre o Serviço de Imigração dos EUA.
Acho que estou feliz por estar aqui.

Tradução Clara Allain

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