São Paulo, sexta-feira, 24 de outubro de 1997
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Kiarostami traz o sabor do Irã

RUI MARTINS
ESPECIAL PARA A FOLHA, NA SUÍÇA

São Paulo terá a oportunidade de ver amanhã, dentro da Mostra Internacional de Cinema, "O Gosto da Cereja", o mais recente filme do cineasta iraniano Abbas Kiarostami, o mesmo de "Através das Oliveiras", que recebeu o Prêmio Especial da Crítica na Mostra de 94.
Maníaco por perfeição, Kiarostami prefilmou "O Gosto da Cereja" em vídeo e, depois de ter recebido a Palma de Ouro no Festival de Cannes, ainda trabalhou no filme, antes de considerá-lo definitivamente concluído.
Esta entrevista, concedida em agosto, durante o Festival de Locarno, na Suíça, ajuda a conhecer um pouco mais esse que é um dos maiores cineastas da escola iraniana, reconhecido na Europa, e imitado dentro e fora do Irã.
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Folha - Como explica o desejo de morrer do personagem de "O Gosto da Cereja"?
Abbas Kiarostami - Ele é alguém que, confrontado com a morte, tenta apreciar o valor da vida. Ele quer morrer, mas ao mesmo tempo quer continuar sua existência. Essa confrontação paradoxal permite dar um sentido à sua vida. Cada existência encontra seu sentido na não-existência, sob pena de não ter nenhum significado.
Folha - "O Gosto da Cereja" foi precedido por um roteiro visual, um guia em vídeo, no qual seu filho Bahman filma um Kiarostami ator, que mostra a Homayoun Ershad como o papel deveria ser interpretado...
Kiarostami - Esse vídeo foi uma nova experiência com meus atores não-profissionais. Eu dirigia o carro e meu filho filmava, sem haver um texto. O roteiro ia sendo construído ao correr dos diálogos, em vez de ser escrito na minha mesa de trabalho. O filme acabou sendo construído dentro do carro. Toda vez que existe um texto escrito, rígido, a tendência dos atores é de perder a naturalidade. O uso do vídeo permitiu a criação de diálogos mais espontâneos. No total, fizemos três vídeos antes de filmar "O Gosto da Cereja".
Folha - O filme termina mostrando como estava sendo feito...
Kiarostami - Uso muito essa técnica de introduzir um filme dentro do outro, como em "Através das Oliveiras", embora não seja uma obrigação. No caso, o objetivo era mostrar uma continuidade independente do filme, que já estava terminado.
Folha - Qual sua relação com seu filho Bahman?
Kiarostami - Bahman trabalha comigo desde os dez anos. Nos outros filmes, ele me ajudou bastante nas filmagens com crianças. Acho que chegou a hora dele começar a aparecer. Seu primeiro filme como diretor é com um de meus antigos atores, Hassan Darabi, e também tem a participação de Jafar Panahi, meu antigo assistente.
Folha - Como está a censura no Irã?
Kiarostami - É claro que eu não aprovo a censura, mas ela acabou tornando os jovens diretores ainda mais criativos. Sobre isso gosto de repetir o que diz um amigo arquiteto: "Os melhores projetos são feitos para os terrenos mais difíceis para construir".
Pessoalmente, não tive grandes problemas com a censura e meus filmes nunca foram cortados de maneira grosseira. Hoje, se eu tivesse de trabalhar totalmente sem censura, acho que teria dificuldades...
Folha - O sr. pretende fazer um filme no exterior, como já manifestou interesse?
Kiarostami - Há algum tempo, pensei em fazer um filme fora do Irã, mas refleti bastante e, como estou trabalhando no meu país em melhores condições que antes, vou continuar lá mesmo, pois o Irã é muito importante nas minhas criações. De qualquer forma, meus filmes podem ser vistos em todo o mundo.
Folha - Sua última visita à Mostra de São Paulo motivou impressões sobre as crianças de rua, publicadas no jornal francês "Le Monde". O sr. disse que tinha vontade de fazer um filme em São Paulo. Deixou de lado esse projeto?
Kiarostami - É verdade que tive vontade de fazer um filme com aquelas crianças, e que, dadas as diferenças, não poderei fazer no Irã.
Folha - Não existe só a censura iraniana, há a censura econômica americana. Quando os americanos poderão ver "Através das Oliveiras" no cinema?
Kiarostami - Acho uma pena não ter sido possível distribuir esse filme nos EUA, embora tenha sido comprado. Fiquei muito feliz quando a Miramax comprou meus filmes e pensei que, finalmente, todos os filmes iranianos acabariam sendo mostrados nos EUA. Depois, soube que compraram tudo, mas não definiram quando e como serão mostrados.
Com isso, aprendi que, para que um filme seja exibido, é melhor que ele seja comprado por um pequeno distribuidor. Senão, os filmes podem ser comprados apenas como investimento.
Folha - Como explica o sucesso de "O Gosto da Cereja" em Cannes?
Kiarostami - É o exemplo do sucesso do cinema feito de maneira autônoma. Fiquei satisfeito com a Palma de Ouro, não só por ter recebido o prêmio, mas pelo tipo de filme que ela premiou. E foi totalmente sincera minha surpresa. Nunca tinha imaginado que um júri de Cannes, onde se prefere assinalar o que ocorre no cinema comercial, daria importância a esse tipo de filme. O prêmio fez com que muitos expectadores, mais interessados pelo cinema de Hollywood, tenham se interessado em conhecer esse tipo de cinema. Foi uma espécie de reconciliação entre o cinema comercial e o cinema de autor. É o tipo de coisa que nos encoraja a continuar fazendo esse tipo de cinema, constantemente preterido em relação ao cinema americano.

LEIA MAIS sobre a Mostra à pág. 4-18

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