São Paulo, sexta-feira, 24 de outubro de 1997
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Juízes e militares

PEDRO CARLOS SAMPAIO GARCIA

A repercussão causada pela decisão do Senado aprovando a reforma previdenciária exige reflexão depois que os militares, junto com os juízes, foram incluídos no regime geral da Previdência Social do servidor público.
Até então não se falava nos militares, também excepcionados do regime geral aprovado. Dava-se ênfase apenas aos magistrados, sem meias palavras. A possibilidade de regular o regime previdenciário dos juízes em lei especial de iniciativa do STF, que seria novamente examinada pelo Congresso, representava privilégio inaceitável, ofensa ao princípio da igualdade, tentativa odiosa dos juízes de obter regalias.
Poucos, como a Folha, cuidaram do tema com pluralidade. Grande parte da imprensa posicionou-se sem aparentar dúvidas. Eram os juízes contra a democracia. A opinião pública foi levada, quase sem nenhuma opção, a acreditar que os juízes defendiam privilégios.
Chegou, então, o dia da votação no Senado. Ainda que boa parte dos senadores tenha defendido a magistratura, com fundamentos inquestionáveis sobre as especificidades da carreira, e sua maioria tenha votado pela regulamentação do sistema previdenciário dos magistrados em lei especial, nada disso mereceu destaque. O que importou, para diversos veículos, foi alardear com sensacionalismo uma pretensa vitória da democracia e a derrota dos juízes, "esses marajás corporativistas que só pensam em seus privilégios".
Mas algo de novo aconteceu. Os militares, surpreendentemente, foram incluídos no regime geral da previdência do servidor público, pois a eles também era dado tratamento diferenciado. Foi o bastante para o tom da discussão mudar. No lugar do histerismo acusador, a serenidade no exame das diferenças. Em vez do maniqueísmo manipulador, o bom senso, a reflexão tranquila.
Todos começaram a falar, especialmente aqueles veículos que reiteradamente atacam a magistratura. Parlamentares vieram a público fazer ponderações. Parece que até o próprio presidente considerava necessário ter cautela no exame do caso dos militares.
De imediato, ressalvou-se que os militares são diferenciados. Deles se exige dedicação exclusiva. Não podem exercer outra atividade. São proibidos de militar em partidos e em sindicatos. Vejam, não podem nem sequer se candidatar a cargos políticos. Não recebem hora extra pelo tempo que se dedicam à carreira nem adicional noturno. Não estão incluídos no regime do FGTS.
Não houve dificuldade para que as diferenças fossem divulgadas, com análises isentas. Logo, começaram alguns a afirmar que não se pode dar tratamento absolutamente igualitário para situações substancialmente diferentes.
Mas sempre para os militares; juízes, não. Embora se exija deles dedicação exclusiva, estejam impedidos de exercer outras atividades que não um cargo de magistério, não possam se filiar a partidos ou se candidatar a cargos políticos, não estejam incluídos no regime do FGTS, não recebam horas extras pela cotidiana sobrejornada (inclusive nos fins-de-semana), não tenham direito a adicional noturno, e apesar de contribuir para a Previdência sobre toda a remuneração e não sobre um limite inferior, como no setor privado, continua-se a tentar impor o "consenso" de que eles querem privilégios.
É de indagar: por que esse comportamento no mínimo estranho? Não sofrem os juízes restrições constitucionais em sua vida privada da mesma forma que os militares? Alguém se lembrou de afirmar que as restrições impostas aos juízes representam tratamento discriminatório odioso, que precisa ser extirpado da Constituição?
Não, ninguém afirmou que os juízes são tratados de forma discriminatória. Porque, da mesma forma que ocorre com os militares, essas restrições não são discriminação; são necessidade.
Juízes e militares, para bem exercer suas funções -uma essencial por constituir-se em um dos Poderes da República, outra por ser responsável pela segurança da nação-, não podem, de fato, ter uma vida normal como qualquer outro cidadão. A natureza de suas atividades exige que se restrinja a sua vida pública e privada.
Não pode haver dúvida de que existem diferenças entre juízes e militares. Com certeza, o militar, no tempo de paz, não tem a sobrecarga de trabalho que tem o juiz. Já num eventual conflito, que esperamos nunca ocorra, o militar será bem mais exigido que o magistrado. Mas, na essência, a condição de ambos é a mesma. Restrições se impõem e garantias lhes são asseguradas.
É preciso acabar com o preconceito. Juízes (e, creio, militares) não querem privilégios. Não se sentem melhores do que ninguém. Sabemos e somos os primeiros a concordar -o que, aliás, também nunca mereceu divulgação- que o atual regime previdenciário da magistratura necessita de reformas.
Aposentadorias precoces devem ser eliminadas. O tempo de serviço ou de contribuição, dependendo do que ficar estabelecido, necessita ser cumprido, como ocorre com qualquer outro trabalhador. Limites mínimos de idade precisam ser estabelecidos. Uma lei nova, de iniciativa do STF, deve contemplar essas mudanças, pois as garantias são apenas aquelas que guardam uma exata proporção com os impedimentos e com as finalidades da função.
É isso que queremos debater numa lei específica, no Congresso, que em última instância definirá o regime dos magistrados. Nada mais estava por trás da famosa expressão "no que couber". Infelizmente, distorcendo as posições dos juízes, fizeram caber muito mais.

Pedro C. S. Garcia, 43, é juiz do trabalho, presidente da 35ª Junta de Conciliação e Julgamento de São Paulo e da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 2ª Região (São Paulo e Baixada Santista) e conselheiro da Associação dos Magistrados Brasileiros.

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