São Paulo, sábado, 25 de outubro de 1997
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"Anthèmes" confirma o gênio de Boulez

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Anthèmes", em francês, não quer dizer nada. É uma mistura da palavra inglesa "anthem" (hino) com "un thème" (um tema), mas soando também como "an-tema", antitema.
"Tema" ou "temas" esses que vão aparecendo e reaparecendo, de forma semelhante à estrutura arcaica do hino: refrão e estrofe. A definição serve para nos dirigir ao universo ambivalente, sugestivo, serenamente turbulento da mais nova peça de Pierre Boulez.
Em sua primeira versão, de 1991, "Anthèmes" foi escrita para violino solo. Já se tratava de uma ampliação da parte do violino em "... explosantefixe..." (1972).
Faz vários anos que Boulez vem escavando sua música, expandindo minúcias com o talento de um comentador inspirado de suas próprias leis.
"Dérivés" 1 e 2, apresentadas por ele nos concertos com o Ensemble InterContemporain, ano passado em São Paulo, eram peças dessa natureza. "Anthème 2", que teve sua estréia mundial dia 19, no Festival de Donaueschingen, seguida de um concerto em Paris, na terça-feira passada, transforma o violino em um outro instrumento, para o qual não se tem nome: a combinação de arco, cordas e programas de computador.
Desenvolvidos por Andrew Gerzso, no centro de pesquisas do Ircam (a seção musical do Centro Georges Pompidou), os programas estão na fronteira do que é possível na chamada "live electronics" (o uso de sistemas eletrônicos ativados e transformados durante a própria performance).
O computador, em "Anthèmes", tem instruções arquivadas na memória. Mas cada operação só será ativada pelos sons ao vivo do violinista. Some-se ao "acompanhamento" uma manipulação extraordinária do espaço, com sons do violino e do computador girando imprevisivelmente pelos alto-falantes. Com tudo funcionando, o que se escuta é um violino multiplicado, ou mutante, reduplicando as narrativas de surpresa e reconhecimento que definem a forma geral da peça.
"Reflexões sobre alguma coisa que já estava escrita." Foi com essa descrição que Pierra Boulez deu início a um comentário sobre "Anthèmes", na pré-estréia da peça em Paris, no auditório do Ircam. Sem exagerar o interesse pela eletrônica, Boulez foi, como sempre, esclarecedor e instigante. A eletrônica está lá para "carregar" os sons do violino de alguma outra coisa, permitindo cinco tipos de intervenção: harmonização, prolongamento, ambientação, contraponto espacial e filtragem.
Entrecortada por florestas de sons aparentemente percutidos, oriundos da transformação computadorizada do "pizzicato" do violino, "Anthèmes" soa encantatória e meditativa.
Longas melodias se deixam interromper por "tocatas" virtuosísticas, tornadas fantásticas pelo contraponto dos sons computadorizados. Ao longo dos 22 minutos, a música vai transcendendo as possibilidades do instrumento.
Nada disso passaria de um manifesto, não fosse o impacto da música de Boulez, que encontrou na violinista sul-coreana Hen Sun Kang um arauto à altura. Ex-primeiro violino da orquestra de Paris, ela é tão impressionante pelo vigor quanto pela confiança.
A pré-estréia em Paris foi um concerto duplo: "Anthèmes", comentários, e depois a peça de novo. Era uma história maravilhosa mesmo, e o concerto marcou, sem alarde nem hinos, simpaticamente, o advento francês de mais um trabalho da longa lista de invenções e auto-invenções do maior músico da nossa época.

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