São Paulo, domingo, 26 de outubro de 1997
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Setor de transporte admite culpa por crise

DA REPORTAGEM LOCAL

Representantes dos principais setores envolvidos no assunto mais polêmico da semana na cidade fizeram um "mea culpa" durante o debate "Os problemas do transporte coletivo em São Paulo", promovido anteontem pela Folha.
Todos assumiram uma parcela de culpa na crise vivida no sistema de transporte coletivo e pela primeira vez vieram juntos a público expor idéias em vez de trocar insultos e fazer lamentações.
Participaram Wilson Maciel Ramos, presidente-executivo do Transurb (sindicato das empresas de ônibus); José Célio dos Santos, presidente do Sindilotação (sindicato dos proprietários de lotações legalizadas em São Paulo); e Francisco Christovam, presidente da SPTrans (São Paulo Transporte), gerenciadora do transporte coletivo na cidade.
Leia a seguir os principais trechos do debate:
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"MEA CULPA"
Wilson Maciel Ramos - Temos responsabilidade sobre o serviço? Temos como operadores, que é o papel que nós podemos desempenhar hoje.
Francisco Christovam - Então qual o esforço que nós estamos fazendo? Agimos dentro das nossas limitações, dentro de condições cada vez mais adversas, porque o que estamos vendo é o espaço viário sendo tomado cada vez mais pelo transporte individual. E a produtividade do sistema cada vez cai mais e o custo aumenta.
José Célio dos Santos - Organização (dos perueiros) é fato. Tem de haver. Isso é público e notório. Ninguém pode trabalhar desordenadamente. Há de se chegar a um consenso. É preciso haver discussões e propostas. Temos de estudar todos os outros meios que deram certo em outras cidades. Dentro do sistema legalizado, tudo está funcionando direitinho. O problema foi a desorganização geral da grande quantidade (de peruas) que chegou à cidade de São Paulo.

CRISE
Christovam - O transporte da cidade de São Paulo está em crise? No meu ponto de vista, não. O que precisamos é resolver da melhor maneira o problema de deslocamento da nossa população, que é baseado no sistema ônibus. Precisamos é ter um "mix" de transportes trabalhando de maneira integrada, todos eles somando esforços, fazendo com que as viagens se tornem as mais rápidas possíveis e possam ser realizadas com menor custo.
Ramos - Basicamente, a reclamação do usuário de transporte é baseada em tempo de espera e tempo de viagem. Nós temos de resolver também o atendimento dado pelo nosso pessoal de operação, o motorista. É crítico isso aí. Já se investiu muito, mas acho que o modelo de treinamento está errado e tem de se buscar alguma coisa melhor.

SOLUÇÕES
Christovam - A solução é somar esforços, é equipar a cidade com veículos de capacidade e tamanhos os mais variados, é utilizar desde um veículo biarticulado -que tem 27 metros de comprimento e transporta 270 pessoas- até um microônibus. Passando pelo biarticulado, o alongado, o padrão, o convencional e assim por diante. Precisamos investir em modelos operacionais como linhas expressas, semi-expressas, paradoras, ponto a ponto, porque nós precisamos achar maneiras de transportar os usuários do melhor modo possível. Precisamos indiscutivelmente partir para a automação, e aí se insere a questão da bilhetagem eletrônica, não apenas por modismo ou porque reduz custo, mas porque aumenta a mobilidade, é um instrumento poderosíssimo de planejamento.
Ramos - Em primeiro lugar, nós temos uma oportunidade única no próximo ano com a implantação da bilhetagem automática. Essa bilhetagem vem trazer facilidades para se montar um novo esquema de operação que venha a atender aquele tipo de movimento que hoje não é atendido e que causa para os usuários deslocamentos absolutamente desnecessários, tempos de viagens excessivos, um fraco atendimento bairro a bairro, regionalizado. Temos um excessivo número de linhas se dirigindo ao centro da cidade, sobrecarregando corredores, reduzindo a velocidade e assim por diante.

SERVIÇO DIFERENCIADO
Christovam - Nós precisamos também discutir essa questão da política tarifária. Há anos que nós aplicamos a tarifa única. E única ela é da primeira hora do dia à última, única ela é independentemente da quilometragem, do percurso, da distância em que os ônibus circulam. Não estou aqui propondo uma tarifa quilométrica, mas acho que nós precisamos estudar uma política tarifária criando tarifas por hora, nós precisamos criar tarifa por tempo de viagem, por tipo de veículo e assim por diante.
Wilson - Achamos que novos serviços devem ser criados também. Não podemos ficar estagnados nos serviços que hoje existem, porque há claramente uma necessidade de produtos diferenciados para atendimento de determinado tipo de movimento e de determinado tipo de usuário, como o proprietário de automóvel.
Santos - São Paulo é uma cidade muito grande. Não pode ser pensado o transporte só por ônibus. Lotação é uma alternativa que foi aprovada por 85% da população.

IMAGEM
Christovam - O serviço de lotação surgiu porque a gente recebe uma pressão, uma contrapropaganda em que o sistema de transporte por ônibus é de tão péssima qualidade, que fez surgir uma alternativa melhor. Nós assistimos gente sendo transportada no porta-mala de uma Kombi, com a perna para fora, a tampa aberta, sob pena de vir a ter o seu membro inferior guilhotinado. Esse é o serviço que diz ser de excelente qualidade.
Santos - A lotação não é uma coisa nova. Ela já existe há 33 anos na cidade de São Paulo. Veio crescendo gradativamente e conquistando os passageiros que antes eram transportados em condições subumanas, pendurados, mulheres assediadas dentro dos ônibus, e isso é uma coisa conjuntural.
Ramos - Qual é a imagem que se tem? É ruim. E por que é ruim? Por uma série de fatores, mas a responsabilidade não cabe só às empresas. Nós não abrimos mão da nossa responsabilidade, mas grande parte disso se dá devido à forma como este modelo de operação está criado: é o engessamento do empresariado.
Christovam - O sistema é mesmo muito engessado. Eu acho que nós precisamos flexibilizar um pouco mais essa operação, confiar mais na competência do empresário e trabalhar mesmo na exceção: se o cliente não está satisfeito com o serviço prestado, troca-se a empresa.

LUXO OU LIXO
Christovam - Nessa questão do perueiro se vai do luxo ao lixo. Nós temos veículos com CD, ar-condicionado, e também temos essas peruas com mais de dez anos de uso, caindo aos pedaços e que transportam o cidadão em condições subumanas.
Ramos - Nós queremos um transporte de qualidade. Comete-se aí um engano muito grande: o excessivo ganho que tem o setor de transporte. Na área de transporte existe uma planilha de custos que é definida pelo governo. Nós não fazemos o nosso preço. Quem faz o preço é o mercado. Pneu custa "x", combustível custa "y", pagam-se tais salários. Soma-se isto e chega-se a um valor, que não é arbitrado, é determinado. A margem de lucro é perfeitamente determinada nessa planilha.
Santos - São 570 mil pessoas transportadas diariamente pelo sistema de lotação. Se você limita, como fez a Câmara Municipal (em 2.700 peruas credenciadas), tira um direito da população, um serviço alternativo principalmente em tempo de rodízio de veículos. Em São Paulo, cabem umas 6.000 lotações. O que está faltando é planejamento, itinerário, índice de passageiro por quilômetro. Mas que há espaço, há.

CONCEITO
Ramos - A grande realidade é que as pessoas não conhecem os empresários do setor de transporte como conhecem os empresários do setor industrial. Todo mundo sabe quem é o pessoal da Fiesp, da Associação Comercial, e ninguém sabe quem são essas pessoas que movimentam cerca de R$ 2 bilhões por ano, dos quais 70% são transferidos diretamente ao trabalhador em termos de salários e encargos sociais. Ninguém sabe que esse setor emprega 55 mil pessoas. A imagem que se tem do empresário de ônibus é de uma pessoa desvinculada com a sociedade e com a necessidade dos usuários.
Christovam - Eu acho que nós temos que mudar esse conceito de que o usuário do ônibus é um cidadão de segunda classe, que ele só resgata sua cidadania no exato momento em que compra o seu automóvel, quando compra um veículo de décima mão, que quebra na via pública -e a CET retira das ruas 700 veículos por dia para a cidade poder se deslocar.
Ramos - Todos ficam satisfeitos quando um supermercado, por exemplo, cresce, dá bons resultados, deixa de ser um supermercado regional e se torna nacional. Todo mundo acha ótimo. Que grande empresário! Se esse empresário for do segmento de transporte urbano, acha-se que o sujeito está ganhando uma fortuna às custas do governo.

FUTURO DOS CLANDESTINOS
Christovam - Com toda a franqueza, eu acho o seguinte: essas pessoas, não sei se levadas a isso, embarcaram em uma canoa furada, com todo o respeito que merecem. Essa questão deixou de ser um problema de transporte, é um problema social. É político.
O que fazer com esses pais de família, eu não sei. O que fazer com os que compraram a perua, eu não sei. O dia em que eu comprar alguma coisa, resolver praticar algo irregular e alguém disser que não pode fazer mais, o problema é meu. Eu vou ter de arcar com as consequências do meu ato. Sei que muitos agiram de boa-fé, mas é a dura realidade dos fatos.
Santos - Essa pergunta (os clandestinos vão continuar trabalhando?) tem de ser respondida pelos vereadores, que votaram um PDL (Projeto de Decreto Legislativo) que era ilegal, imoral e inconstitucional. Eles é que têm de responder isso.

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